sexta-feira, 20 de julho de 2012

Comprando passagens de navio

     O dia seguinte amanheceu quente, como era de se esperar, embora estivesse frio para os padrões da região, apenas 31 graus.
     Depois do café da manhã caminhei até o porto para conhecer embarcações e alternativas para a viagem até Belém. Fiz exatamente aquilo que todos me aconselharam a não fazer, adquirir a passagem com um dos vendedores da rua.
     Aqui cabe, novamente, o alerta sobre o turismo no Brasil, já destacado anteriormente. Talvez, por outrora e também nos dias atuais, muitos estrangeiros virem para esta região com o único intuito de extorquir a riqueza da terra, os nativos se colocam na posição de reaver ao menos uma parte desta riqueza que lhes é tirada sem escrúpulos. Assim, por que haveriam eles de ter algum escrúpulo e, afinal, um turista é sempre um estrangeiro, e tem contra si o desconhecimento dos saberes locais. Mas não tenho do que reclamar. Não paguei tão barato quanto um nativo consegue pagar, nem tão caro quanto muitos turistas acabam pagando, além de receber muitas orientações e esclarecimentos.
     Mas é preciso tomar cuidado com gentilezas, pois a gentileza é uma mercadoria que custa caro. Nunca aceite uma gentileza sem perguntar seu preço antes, pois uma vez aceita, não há como discutir seu valor depois. Assim foi um passeio de lancha rápido para conhecer um dos barcos que poderia me levar até Santarém, cujo preço não vou citar pelo absurdo do valor em relação ao serviço prestado. Uma vez na armadilha, como sair dela?
     No barco, o NM São Bartolomeu II, uma suite que poderia sair por até R$ 300 não chegou a menos de R$ 450 e sai por R$ 600 para outros. Acabei optando mesmo pela rede, que apesar da falta de costume, atendia ao meu anseio de vivenciar a viagem como é comum para a maioria dos que empreendem esta viagem. Paguei R$ 90, poderia ter sido por R$ 60 ou R$ 120, mas não quero mais discorrer sobre as tabelas portuárias.
     O vendedor ganhou minha simpatia pelas informações e orientações. Decidi por sair de Manaus no dia seguinte, parar em Santarém para conhecer Alter do Chão e também adquiri, antecipadamente, a passagem Santarém-Belém no navio NM Amazon Star por R$ 140. Assim, a passagem Manaus-Belém saiu por R$ 230.
      Esta mudança de programação proporcionou os momentos mais emocionantes da viagem, sobre o que tratarei mais tarde. Foi assim que uma viagem Manaus-Belém se tornou uma viagem Manaus-Santarém-Alter do Chão-Belém, um dia a menos em Manaus para obter um dia em Alter do Chão que valeram uma vida!

Lá, fora...

Um céu "estrelinhoso", como diz Mia Couto em "Terra Sonâmbula", o livro que me acompanha nesta viagem; "a escuridão nos faz nascer muitas cabeças".
     Terminado o espetáculo, depois do bis já esperado, ouço meu nome. O mundo pode ser grande, mas gira sem parar e, assim, aqui nos confins do país, encontro um amigo de minha cidade natal. Assim acontecem os encontros.
     Na praça, agora acompanhado, encontro algo para saciar minha fome; o tradicional Tacacá da Gisela, um caldo forte com folhas de macaxeira e camarões. Uma delícia para o gosto manauense, que aprovei e voltei para repetir a dose no dia seguinte.
     Mas a noite ainda não havia terminado. Pegamos um trem, literalmente, que faz um passeio turístico pelo centro, para chegarmos ao Clube do Rio Preto onde estava acontecendo a segunda festa da vitória do Boi Caprichoso.

     Lá chegando a festa já estava no fim, poucas pessoas dançando, mas ainda muita animação nos pés e nos corpos. Havia uma piscina onde um folião se jogava de vez em quando. Poucas músicas foram tocadas até que o silêncio dos tambores e das vozes determinasse o fim definitivo da festa.
     Persistindo na primeira noite em Manaus, continuamos nossa caminhada sem rumo pelo centro da cidade, buscando um lugar qualquer. Resolvemos tomar uma última cerveja no Bar do Armando, que também já estava em final de expediente.
     Teimosamente continuamos a busca por outro lugar para dar prosseguimento à noite, mas a inexistência de alternativas nos levou à despedida. Dadas as devidas lembranças ao amigo, seguimos, cada um o seu rumo.
     E assim foi o primeiro dia e a primeira noite em Manaus.

Manaus

     Do aeroporto ao centro arrisquei o ônibus e foi super tranquilo. O ônibus comum, R$ 2,70 e uma van a R$ 4,30, com ar condicionado. A van passou primeiro e foi uma viagem quase como um táxi pois éramos eu e apenas mais um passageiro. Melhor que os R$ 40 a serem pagos por um táxi "comum".
     Já havia pesquisado alguns hotéis. No centro da cidade existem muitos, alguns mais simples, outros com um pouco mais de requinte, mas o preço é sempre inferior a R$ 100 a diária com café da manhã. Alguns, mais sofisticados, pode chegar a R$ 120, mas não vi nenhum acima de R$ 150. E com alguma conversa o preço fica ainda melhor. Optei por um hotel bem simples, R$ 70 a diária, com ar condicionado, tv e café da manhã. Não pretendia ficar muito tempo dentro do hotel, era dormir, tomar banho, deixar a mochila e pertences.
     Bem, era uma tarde de domingo. A cidade estava em cesta... poucas pessoas pelas ruas, muito calor, tudo fechado. Foi até difícil encontrar um lugar para comer. Já era tarde para o almoço, muito cedo para o jantar. A solução foi um lanche bem gostoso, um X Picanha por apenas R$ 8, e um açaí no copo, de sobremesa, um picolé.
     Depois da refeição a alternativa foi ficar no quarto de hotel, protegido do calor pelo ar condicionado, vendo tv a cabo. Em Manaus, um autêntico domingo paulista.
     Neste quarto, o cheiro dos pensamentos, o descanso embaçado pela excitação do lugar desconhecido instigado pelo querer conhecer. Quando a luz do dia deixou de clarear o quarto, um banho espantou a letargia. Troca de roupa, perfume, agrados para a pele e rua.
Teatro Amazonas
     Ao chegar na Praça do Teatro Amazonas a cidade já estava repleta de vida. Palcos espalhados pela praça ofereciam magia, música e dança. Mas a majestade deste momento era o Teatro, ainda mais vê-lo com a noite e suas luzes. Foi quando notei uma fila e me veio o pensamento: por que não assistir a um espetáculo? Ao me aproximar já tive a agradável surpresa de ser um espetáculo gratuito, era só pegar a fila e entrar. Para maior alegria, haveria uma apresentação da Orquestra de Violões do Amazonas. Tive até um tempo gostoso para admirar os detalhes do Teatro, a boca de cena, as frisas, o teto, as cadeiras de madeira, confortáveis e belas.
Teatro Amazonas
     Estar ali já era algo sublime e ficou ainda melhor quando anunciou-se o repertório da noite, dedicado ao Folclore Regional. Para quem sempre evita o afogamento em meio a tanta música ruim e aos tec-tec-tecs doentios do dia-a-dia, a apresentação da Orquestra de Violões do Amazonas foi um balsamo. E não foi apenas o agradável da música, que foi excelente. O repertório apresentou canções de alguns dos Festivais da região. Fora o já globalizado Festival dos Bois de Parintins, tive o imenso prazer de saber sobre o Festival do Peixe Ornamental de Barcelos, com os peixes Cardinal (azul e vermelho) e o Acará-disco (preto e amarelo) - http://www.barcelosnanet.com/2012/01/festa-em-barcelos-am-xviii-festival-do.html. E também  o Festival de Cirandas de Manacapuru - http://portalamazonia-teste.tempsite.ws/sites/ciranda/conteudo-menu.php?idM=2551.
     Soube que também existe um festival de tribos indígenas. É muito bom descobrir toda esta riqueza cultural que se perpetua apesar do grande império da mediocridade.
Orquestra de Violões do Amazonas
     Um dos pontos mais sublimes da apresentação, para meu gosto, para minha alma, foi o canto da Iara que é uma das canções do Boi Caprichoso. No palco, Karine Aguiar (de branco) fazia a canção, e Míriam Abad (de preto) fazia a voz da sereia. Por sintonia, nesta noite, vestia bermuda e camiseta azuis e não tive dúvidas, eu sou Caprichoso.
     Do Festival do Peixe Ornamental de Barcelos, há o Cardinal, que gosta de navegar, mas gostei mais do Acará-disco que, pela canção, gosta de desafios.
     Suspiro. Um espetáculo belíssimo, grandioso, em todos os aspectos.
     Obrigado Amazonas!

São Paulo - Manaus

     Finalmente, acomodado no avião, apenas com o atraso considerado padrão e desconsiderado nas estatísticas e relatórios, a avião decola.
     Como detalhe previsto e realizado, uma poltrona na janela, marcada com antecedência, fora das asas, para aproveitar todo o visual possível. Apesar do tempo nublado, o passeio voando a mais de 10km de altura proporcionou belas paisagens, garantindo uma viagem muito agradável.
     Começamos com a paisagem paulista, pontuada por cidades, entrecortada por estradas, cores e formatos diversos.
     Passado um tempo, a paisagem no solo muda. As cidades desaparecem. O que vemos são imensos quadriculados de plantações. Talvez seja este o tão propagado progresso da agricultura no Brasil, mas não tenho argumentos para desenvolver este tema.
     Finalmente, a tão esperada floresta. Um horizonte sem fim de árvores, verdes, riscado por rios curvilíneos, alguns largos, outros um fino fio de água, muitos alagados, lagoas, águas escuras, um dos rios com águas marrom barrentas, talvez o Solimões.
     Esta imagem me faz refletir. Por que os rios teimam em fazer curvas? Por que não seguem linhas retas, curvando-se apenas por necessidade, como as estradas? Porque os rios nos convidam a ficar, enquanto as estradas nos instigam a seguir.

Inicia-se a viagem...

Metrô, domingo, 6h30
     Como nada em São Paulo é tão fácil como poderia ser, chegar ao aeroporto e embarcar no avião teve suas intempéries.
     Apesar de ser um domingo, que pede cachimbo, 6h30 de uma manhã fria, o metrô e o ônibus para o aeroporto estavam absurdamente lotados. Poderia ter me dado ao luxo de pagar R$ 35 por um ônibus executivo, ou R$ 80 por um táxi. Poderia.
     Resolvi pagar R$ 7,30 (metrô + ônibus) para usufruir da categoria popular, que é a minha categoria. É uma pena que, mais uma vez, exista esta confusão entre luxo e dignidade. Eu não sou obrigado a pagar mais caro para ter um transporte digno. Eu posso pagar mais caro para ter luxo ou um conforto extra.

     E, ao chegar no aeroporto, o caos continua, e neste caso, não existe diferença de preços, o tratamento inadequado é o mesmo para todos. Filas, confusão, espera, trocas de portão de embarque, uma saga até o último instante de embarque.
     Portanto, o elemento essencial para qualquer viagem no Brasil é "muita paciência", seguir o conselho da ex-ministra de turismo "relaxa e goza", e prestar mais atenção nas próximas eleições.

Preparativos da viagem

Priscila, a rainha do deserto
     Antes mesmo do início da viagem muitas atividades já são realizadas. No caso desta viagem para a floresta, vacina para febre amarela e repelente de insetos para amenizar o risco de outras doenças que não tem vacina, como a malária. São atividades imprescindíveis.
     A aquisição de uma mochila adequada, onde caibam todos os utensílios necessários para a viagem e que possa, se possível, ser transportada como bagagem de mão, mesmo quando é carregada nas costas. Este detalhe simplifica muito todas as etapas da viagem, principalmente no aeroporto, mas não só, pois o cuidado com um único volume é bem menor do que se preocupar com uma série de malas, bolsas, mochilas ou qualquer outro apetrecho considerado necessário.
     Sou desta opinião: a única grande necessidade é viajar. Os demais utensílios apenas podem facilitar alguns aspectos, ou embelezar, mas na maior parte do trajeto podem atrapalhar muito. Portanto, em viagens, quanto menor a bagagem, maior a diversão.
     Porém, em uma viagem como esta, é imprescindível levar um bom livro como companhia, preparar uma boa trilha sonora para nos acalentar e, se padecer do mesmo mal que eu, um bom caderno com capa dura, lápis e apontador para as inevitáveis anotações que, não tenha dúvida, clamarão por existência.
     Findos os preparativos pragmáticos, as férias começarão antes mesmo do embarque. Neste caso, dois dias antes da primeira viagem de avião. Aproveitei estes dias para curtir a cidade onde moro, a capital. Fui assistir ao espetáculo "Priscila, a rainha do deserto", um bom roteiro para quem vai sair em viagem. Seguiu-se uma bebedeira comemorativa adequada ao momento nos bares de minha preferência.
     Depois da noite festiva, um dia de descanso e preparos finais da bagagem e outros detalhes.
Priscila, a rainha do deserto

Preâmbulos - viagem Manaus a Belém em julho de 2012

     Sou daqueles que sofrem o desejo de escrever. Escrever diários, escrever bilhetes, escrever situações, anotações. Eternizar um presente, a escrita, que é passado, vida, que já é futuro, nas possíveis leituras. Mas careço de criatividade, não sei inventar personagens e situações, o que escrevo é vida vivida, é vida ouvida, é vida partilhada.
     Então, comecei com o desejo de uma viagem que transformei em realidade e descrevo aqui esta andança.
     Uma das boas coisas do trabalho são as folgas e férias. Assim, então, eis-me aqui, com duas semanas de recesso escolar - outro nome utilizado para férias - cujo usofruto tem sido programado desde férias anteriores no início deste ano.
     Tudo nasceu com uma vontade, simples. Professor de História, sempre tive a Amazônia como um país distante, e há quem diga que nem mesmo Brasil ela é. Do pouco ou nada que conheço deste mundo, floresta, tudo é restrito a leituras e saberes teóricos. Foi com esta inquietação que determinei à minha vontade o realizar da viagem Manaus-Belém, de barco, pelos rios da Amazônia. Desbravar meu próprio país.
     Feitas as necessárias pesquisas, os eixos principais da viagem foram determinados: avião São Paulo a Manaus, dadas e preços de navios Manaus a Belém e o encerramento inevitável Belém a São Paulo de avião. Após algumas referências de hotéis, avaliações de preços e gastos, decidida foi a viagem.
    A primeira etapa foi, de todas, a mais tranquila. Determinar datas, comprar passagens de avião, tudo com a antecedência adequada para conseguir preços mais acessíveis e pagamento parcelado.
     As etapas intermediárias determinaram o grau da aventura. Os preços da viagem de barco variavam muito, de menos de R$ 200 a mais de R$ 600. É um dos males do turismo selvagem que se pratica no Brasil. Como se a única oportunidade de ganhar dinheiro, muito dinheiro, seja cobrando o máximo possível de turistas, que por mais precavidos que sejam, estão sujeitos à ignorância do ambiente que querem conhecer.
     Esta prática já se dá a partir dos taxistas de aeroporto, creio que sejam o maior exemplo desta falta de caráter. Mas mesmo um quarto de hotel pode custar R$ 40 para um nativo e R$ 100 para o turista, e um turista "esperto" consegue pagar barato R$ 70. Depois, neste caso específico, vem a passagem de barco, onde um camarote custa R$ 600, o turista pode receber um bom desconto e pagar R$ 450 ou R$ 500, mas um nativo não paga mais do que R$ 300. Se a viagem for em rede, no nativo paga R$ 40 ou menos, e o turista, com desconto, paga R$ 90, mas este preço pode chegar a R$ 120 e até mais.
     Enfim, cultura brasileira, para que cobrar um preço justo se eu tenho a oportunidade de ganhar mais dinheiro com isto? É assim que caminha o turismo no Brasil.