quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

MEMÓRIAS NATALÍCIAS

A cidade ainda estava adormecida quando eu comecei a caminhar por suas ruas e memórias. Eu penso como se escrevesse e, ao caminhar, o pensamento fala alto.
O Lago Municipal é um dos lugares que eu mais gosto de visitar quando estes momentos ocorrem em minha cidade natal. Muitas vezes em minha vida, em noites de insônia e de pensamentos que não cabem em minha cabeça, caminhar ao redor do lago sempre me traz tranquilidade.
No I Ching, Tui é o trigrama do lago, representa a filha menor, mais jovem, e seu atributo é a alegria. No entanto, essa jovialidade e alegria não se origina na maleabilidade de que é dotada a linha na última posição. O atributo do princípio maleável ou obscuro não é a alegria e sim a melancolia. Todavia, a alegria é indicada pelo fato de haver duas linhas fortes no interior que se expressam no plano externo através da suavidade.
Nesta manhã de natal, enquanto a cidade ainda estava adormecida, para lá fui eu, levar meus pensamentos para passear e para intensificar minha alegria este passeio foi um lindo presente.
Desde minha infância o lago foi meu lugar. Me lembro de olhar a placa do parque de brinquedos e calcular quantos anos eu ainda poderia usufruir daqueles brinquedos para crianças até 12 anos. Me lembro de desobedecer mãe e avós e ir até o lago sozinho apesar da advertência de nunca ir ao lago sem alguém para me acompanhar. Me lembro de caminhar no zoológico, pelo corredor ladeado por jaulas com animais. Do urso que não parava de andar desesperadamente dentro de sua jaula com piscina, pela qual ele entrava e saia como parte de seu trajeto quadrilátero. Do macaco que jogava banana e cocô nas pessoas que ficavam gritando com ele para depois desviar das bananas e fezes jogadas. Do leão desdentado que fugiu da jaula e foi morto antes mesmo de sair da área do lago.
Este zoológico foi fechado pelo IBAMA há muitos anos atrás. Muitas pessoas ficaram aborrecidas por tirarem delas este direito à diversão. Eu parei para pensar e fiquei agradecido, apesar de não saber para onde urso, macacos, leões e os outros animais foram levados e que espécie de jaula eles passariam a habitar.
Por todos estes muitos anos desde que o zoológico foi fechado, esta área do lago ficou abandonada, com suas jaulas vazias, com seu corredor intransitável. Hoje, para minha alegria e presente de natal, esta área do lago foi revitalizada!
 















Onde antes havia jaulas, hoje existe pequenas praças com bancos de madeira, muita água, plantas, flores, ervas, um lago com carpas e uma gaiola imensa com inúmeras araras. O parque de brinquedos também foi revitalizado, com brinquedos novos. Já vivi muitos anos além daqueles que me restavam para brincar nos brinquedos do parque, mas senti minha alma revitalizada.
 



















Para maior alegria, foi criado o Projeto Pró-Arara. Há algum tempo eu vinha ironizando o nome de minha cidade natal, que não devia mais ser chamada de Araras e sim de periquitos, pois não havia mais nenhuma arara na cidade. O Projeto Pró-Arara é um centro de reabilitação de aves nativas vítimas de maus tratos ou apreendidas do tráfico ilegal para reintrodução à vida livre na natureza de Araras. Presente melhor não há!
 














Minha imensa gratidão ao Prefeito Brambilla e a todas as pessoas responsáveis e envolvidas nesta transformação maravilhosa.

Depois de me encantar com este presente delicioso voltei para minha casa. O caminho de volta foi uma imersão em recordações. O Cine Araruna é uma igreja com catarses espirituais da idade média. O Cine Santa Helena está abandonado e sujo. A Basília de Nossa Senhora do Patrocínio com o som de orações e sinos se espalhando pela praça. O banco de madeira antigo, um dos últimos que restou de tempos imemoriais, onde meu avô Nicolau se sentava protegido pela sombra de uma árvore que foi cortada.
Continuando a caminhada, o parque infantil onde aprendi minhas primeiras letras. Logo depois, a casa da minha avô Sunta, que hoje é um escritório. Sempre passo em frente a esta casa e respiro forte para tentar sentir os cheiros daquela casa, o cheiro gostoso de velha da minha avó, que eu sempre sentia quando a abraçava. O cheiro do fogão a lenha. O cheiro da sala e dos quartos. Aquela casa era repleta de cheiros que hoje não existe mais.
Pelo caminho, muitas casas estão vazias, com placas de vende-se ou aluga-se. A ausência e abandono são perceptíveis. Minha mãe estava me contando dos falecimentos. As pessoas que habitavam aquelas casas não vivem mais. Será que a memória viverá? Ou a memória já foi vendida, alugada ou simplesmente encaixotada?

Feliz natal para todos, até que a morte nos separe.