segunda-feira, 25 de abril de 2016

CANTO AO SONO - Thomas Mann

Há escritorxs e textos que veem ao nosso encontro e se casam conosco.
Eu guardo muitos deles em mim, em minha alma, em minha mente.
Clarice eu precisei corporificar. Clarice fala tão alto e claro dentro de mim que precisei dar-lhe voz, dar-lhe corpo! É.
Hermann Hesse é quase eu mesmo. Knulp é minha morte!
Não vou falar de Pessoa, pois ele me define, define meu amar, para mim, verbo transitivo direto… contrariando o Poeta.
Thomas Mann me transporta a outras vidas e dimensões. Ler “A Montanha Mágica” foi uma viagem que durou sete meses. Durante a leitura realizei, de fato, muitas viagens. As últimas páginas foram lidas dentro de um ônibus e simplesmente não continha as lágrimas. Eram necessárias pausas para controlar a emoção e chegar aos últimos parágrafos. Foi o meu mais profundo adeus.
A sincronicidade dos textos que se aproximam de mim me surpreende. Hoje, em minha angústia, “Canto ao Sono” apropriou-se de mim. Quase escrevi-o eu mesmo. Pensei em recortar-lhe e enxertar-lhe palavras minhas… mas não ousei profanar este texto sagrado. Resolvi, mera a mente, digitar, cada letra, cada palavra, como um ator da escrita:

“Que a noite caia a cada dia; que a graça do sono estenda-se todas as noites, apaziguadora, trazendo o esquecimento sobre os tormentos e as misérias, o sofrimento e a angústia; que ainda uma vez esta bebida de consolo e letargia distribua-se aos nossos lábios ressecados; que ainda uma vez, após a luta, este banho morno acolha nosso corpo fremente, a fim de que, purificado do suor, da poeira e do sangue, revigorado, renovado, remoçado inconscientemente, dele emerja com sua vitalidade e prazer originais. Ah! Meu amigo! Sempre senti e considerei o sono como o mais beneficente e emocionante dos grandes fenômenos criadores do impulso cego. Saímos da noite sem sofrimentos, para penetrar no dia, e caminhamos. O sol é calcinante, andamos sobre espinhos e seixos cortantes. Sentimos nosso peito sufocar. Que assustador seria se a ardente estrada da fadiga se estendesse diante de nós sem fim provisório, sob uma luz cruz, a perder-se de vista. Quem teria forças de percorrê-la até o fim? Quem não se prostraria pelo desencorajamento e desgosto?
Mas eis a noite materna que surge novamente, sempre novamente, sobre o caminho de Paixão da vida. Cada dia tem um fim. Um bosque espera-nos, num murmúrio de fonte e numa verde penumbra, onde um maravilhoso frescor recobrará sobre nossa fronte a paz de nossa terra natal, então os braços estreitados num abraço, a cabeça tombada para trás, os lábios entreabertos e os olhos afortunadamente revoltos, penetramos numa sombra deliciosa.
Dizem que fui criança tranquila, nem barulhenta nem agitada, mas inclinada ao torpor e à sonolência, de um modo agradável para as mulheres que cuidavam de mim. Acredito, pois lembro-me de amar o sono e o esquecimento numa época em que não tinha nada a esquecer; e até me sinto capacitado para dizer que choque espiritual provocou nesta silenciosa inclinação natural a transformação em afeição consciente. Deu-se após eu ter ouvido o conto “O Homem Sem Sono”, a história desse homem preso ao tempo e às suas próprias ações, com ardor tão insensato, que maldizia o sono. Então, um anjo concedeu-lhe a realização de seu desejo, tirando a sua necessidade física de dormir, soprou sobre seus olhos para que eles se tornassem semelhantes a cinzentas pedras em suas órbitas e não se fechassem jamais.
Como esse homem lamentou seu pedido; o que então suportou, só, privado do sono entre todos os homens; como o triste condenado arrastou sua vida, até o dia em que a morte o libertou e quando a noite, que pairava inacessível diante de seus olhos de pedra, atraiu-o até ela e para ela. Não poderia contá-lo com maiores detalhes, todavia sei que durante aquela noite, não me continha de impaciência para que me deixassem só em meu leito a fim de lançar-me no seio do sono; nunca dormi tão profundamente como naquela noite em que ouvi essa história.
Desde então sempre fiz distinção entre os livros que poderiam dizer algo em louvor ao sono; e Mesmer, por exemplo, exprimiu-se bem de acordo comigo, quando sublinhou a possibilidade de que o sono (que forma a base da vida vegetal, e do qual a criança, em suas primeiras semanas de vida, sai apenas para alimentar-se) seja talvez o estado natural, original do homem, aquele que corresponde mais diretamente à finalidade do fenômeno de vegetação. “Não se poderia dizer, propõe o genial charlatão, que apenas despertamos para dormir?” Julgo isso extremamente bem pensado. Seguramente o estado de vigília é apenas uma luta para preservar o sono. Darwin também não pensa que o espírito se desenvolveu somente como uma arma na luta pela vida? Arma perigosa! Uma arma que, se nenhum perigo ameaça nossa segurança, vira-se frequentemente contra nós. Felicitemo-nos quando ela repousa, quando a chama crua e consumidora da consciência que temos do mundo ao nosso redor e em nós próprios reduz satisfatoriamente sua atividade, quando podemos, então, abandonarmo-nos novamente à nossa verdadeira e feliz natureza.
Contudo, se a angústia desperta-nos, não é ela que afinal nos afasta do sono. Acreditarias em mim, se te dissesse que não conheço insônia causada por desgosto ou preocupação? Só experimentei verdadeiro fervor pelo sono após ter passado a primeira fase de liberdade, de intangibilidade, quando os desgostos da vida sob a forma da escola começaram a turvar meus dias. Nunca mais formi tão deliciosamente quanto durante algumas noites de domingo para segunda-feira, quando após um dia protegido, pertencendo aos meus e a mim mesmo, a manhã seguinte ameaçava-me novamente com dificuldades duras e estranhas. E isso sempre acontece. Nunca durmo tão profundamente, sem experimento um retorno mais doce ao seio da noite, que quando estou infeliz, quando o meu trabalho não foi bem sucedido, quando o desespero me oprime, quando desgostoso dos homens encontro refúgio nas trevas…; e como, pergunto, poderia ser de outro modo, já que é naturalmente impossível que a inquietação e o sofrimento reforcem nossa afeição ao dia e ao tempo?
Sorrirás se eu te disse que preservo uma recordação precisa e reconhecida de cada leito no qual dormi durante algum tempo, de cada um deles, desde a pequena cama de grades com cortinas verdes, que foi o primeiro, até o imponente leito de acaju onde nasci e que durante sucessivos anos reinou em meus apartamentos de jovem celibatário? Atualmente possuo um leito mais leve, inglês, laqueado de branco. Por cima está suspenso, numa moldura branca, este quadro francês intitulado “Rumo à estrela”, o qual, com a sua atmosfera azul esmaecida, imprecisa e musical, é o mais belo ornamento de alcova que posso imaginar… Sorrirás, repito, contudo, que lugar insigne ocupa o leito em nosso mobiliário, este móvel metafísico, onde os mistérios do nascimento e da morte se cumprem, este habitáculo de linho perfumado, onde inconscientes, com os joelhos dobrados como antigamente nas trevas do ventre materno, reatamos de alguma forma o cordão umbilical da natureza, atraímos o sustento e a renovação por vias misteriosas… Não seria como um barquinho mágico, posto de lado num canto, velado e discreto durante o dia, e no qual, a cada noite, vagamos sobre o mar do inconsciente e do infinito?
O mar! O infinito! Meu amor pelo mar, que sempre preferi pela imensa uniformidade à ambiciosa variedade de aspectos da montanha, é tão antigo quanto meu amor pelo sono e sei perfeitamente onde essas duas simpatias encontram sua raiz comum. Tenho em mim muito hinduísmo, muita nostalgia indolente e profunda, por esta forma ou não-forma de perfeição chamada Nirvana ou o nada; e, ainda que artista, tenho uma inclinação bem pouco artística pelo eterno, que se traduz por uma aversão à articulação e à medida. O que contrabalança essa inclinação, creia-me, é a correção e a disciplina; é, para empregar a palavra mais séria, a moral… Ora o que é a moral? O que é a moral do artista?
A moral tem duas faces, concentração e abandono, e uma sem a outra nunca é legítima. A “concentração”, esta fecunda antítese da distração (a propósito da qual Grillparzer cria seu sacerdote uma magnífica linguagem), é necessário havê-la sentido para compreendê-la, não sendo raro que uma imagem particular provoque em mim, sempre de novo, a impressão mais profunda dessa palavra: a imagem do feto no ventre de sua mãe. Nossa cabeça, imagine, não se encontra redonda e acabada de uma só vez, de modo a ter apenas que se desenvolver como um todo… A princípio o rosto está aberto na frente, ele cresce pouco a pouco dos dois lados para juntar-se no meio, fecha-se lenta e firmemente a fim de transformar-se no rosto simétrico, dotado de visão, de vontade, individualmente condensado do nosso “eu”… É este processo de junção, de acabamento, de formação para tornar-se uma figura determinada, saído do mundo das possibilidades, é essa imagem que me faz pressentir aquilo que afinal se consuma além da aparência. Sinto, então, que toda existência individual deve ser compreendida como a consequência de um ato de vontade supra-sensorial, de uma decisão de concentrar-se fora do nada, de renunciar à liberdade, ao infinito, a dormitar e a mover-se na noite imaterial e intemporal, uma decisão moral de existir e sofrer. Sim tornar-se é, em si, um ato moral. De outra forma qual seria o significado destas palavras proféticas: “Nosso maior pecado é o de ter nascido?”… Só um boçal considera pecado e moralidade como conceitos opostos. Eles formam apenas um. Sem o conhecimento do pecado, sem o abandono ao que é funesto e nos consome, toda moral é uma afetação de virtude. Não são a pureza e a ingenuidade que constituem o estado desejável no sentido moral, não são a prudência egoísta e a arte desprezível de preservar a consciência tranquila que formam o elemento moral, mas a luta e o desgosto, a paixão e o sofrimento. “Aquele”, escreveu, em alguma parte, Heinrich von Kleist, “que ama a vida com prudência já está moralmente morto, pois sua mais intensa força vital, que é de podê-la sacrificar, atrofia-se, quando ele cerca-se de cuidados.” A palavra de maior sentido moral do Evangelho é: “Não resista ao mal!”
A moral do artista é a concentração, a força de concentrar-se egoisticamente, a decisão de dar forma, de modelar, circunscrever, renunciar à liberdade, ao infinito, à sonolência e ao movimento no domínio ilimitado da sensação. Enfim, a vontade de criar uma obra. Mas quando desprovida de nobreza e moral, exangue e repulsiva, é a obra nascida de uma arte fechada em si, prudente e virtuosa! A moral do artista é abandono, afastamento e perda de si próprio, é luta e tormento, aventura, conhecimento e paixão.
A moral é sem dúvida o maior encargo da vida, é a própria vontade de viver, todavia se o fato de se dizer que a vida é o bem supremo é mais que uma frase de teatro, então deve existir algo maior e mais definitivo que essa vontade: assim como a moral consiste em corrigir e disciplinar o que é livre e possível, para reconduzi-lo ao limitado e ao real, por sua vez requer um corretivo, uma explicação, uma exortação incessante (que não se pode deixar de ouvir) uma incitação ao recolhimento e à renúncia… Dá a esse corretivo o nome de sabedoria e seu contrário será a loucura do homem preso ao tempo e ao instante com tão cega paixão que chega a maldizer o sono. Dá-lhe o nome de religiosidade, seu contrário será a bestialidade ligada aos instintos pagãos e cuja fuça permanece presa ao chão sem ver a grande paz estelar acima. Chama-lhe nobreza, seu contrário será a vulgaridade que se encontra à vontade, inteiramente e sem nostalgia, na vida e na realidade, que não conhece pátria superior; apesar de que existem pessoas tão grosseiras, tão inabalavelmente eficientes que não se pode imaginar sua morte, sua consagração à morte.
Se não é a depressão que nos priva do sono, mas a paixão, chamada por Gotama Buda “devoção”, a fervorosa ligação do nosso “eu” à atividade cotidiana, isso é então mais que o sintoma de um estado nervoso. Significa que a nossa alma perdeu sua pátria, que no seu ardor se afastou tanto que não consegue encontrar o caminho do retorno; contudo, não é frequente termos a impressão que precisamente os maiores e mais fortes homens de ação, os apaixonados, se “reencontram” sempre com facilidade? Ouvi dizer que Napoleão podia adormecer quando queria, em pleno dia, entre pessoas, no tumulto de uma batalha indecisa…
Enquanto penso nisso, tenho sob os olhos esta imagem, sem grande valor artístico, cujo assunto sempre exerceu sobre mim infinita fascinação. Intitula-se: “É Ele”. Representa um pobre quarto de camponeses. Seus ocupantes, marido, mulher e filhos, comprimem-se à beira da porta aberta, numa contemplação espantada. Pois lá, no meio do cômodo, apoiado na modesta mesa, o Imperador está sentado e dorme. Está sentado lá, este símbolo da paixão egoísta e exuberante, tirou sua espada, seu punho descontraído repousa sobre a mesa, e com o queixo inclinado sobre o peito, ele dorme. Não sente necessidade de silêncio, da obscuridade, nem mesmo do travesseiro para esquecer o mundo. Sentou-se sobre a dura cadeira, a primeira que surgiu, fechou os olhos, deixou tudo atrás de si e dorme.

Certamente, é aquele que conserva pela noite mais fidelidade e nostalgia, aquele que todavia durante o dia produz obras formidáveis. Eis por que prefiro a obra nascida da “nostalgia da noite sagrada”, que, apesar de si mesma, volta-se para o esplendor de sua vontade e embalo sonhador. Enquanto escrevo, ouço “Tristão” de Richard Wagner. [Enquanto digito, ouço as suítes para violoncelo de J. S. Bach.]