Há escritorxs e textos que veem ao nosso encontro e
se casam conosco.
Eu guardo
muitos deles em mim, em minha alma, em minha mente.
Clarice eu
precisei corporificar. Clarice fala tão alto e claro dentro de mim que precisei
dar-lhe voz, dar-lhe corpo! É.
Hermann Hesse é
quase eu mesmo. Knulp é minha morte!
Não vou falar
de Pessoa, pois ele me define, define meu amar, para mim, verbo transitivo
direto… contrariando o Poeta.
Thomas Mann me
transporta a outras vidas e dimensões. Ler “A Montanha Mágica” foi uma viagem
que durou sete meses. Durante a leitura realizei, de fato, muitas viagens. As
últimas páginas foram lidas dentro de um ônibus e simplesmente não continha as
lágrimas. Eram necessárias pausas para controlar a emoção e chegar aos últimos
parágrafos. Foi o meu mais profundo adeus.
A
sincronicidade dos textos que se aproximam de mim me surpreende. Hoje, em minha
angústia, “Canto ao Sono” apropriou-se de mim. Quase escrevi-o eu mesmo. Pensei
em recortar-lhe e enxertar-lhe palavras minhas… mas não ousei profanar este
texto sagrado. Resolvi, mera a mente, digitar, cada letra, cada palavra, como
um ator da escrita:
“Que a noite
caia a cada dia; que a graça do sono estenda-se todas as noites, apaziguadora,
trazendo o esquecimento sobre os tormentos e as misérias, o sofrimento e a
angústia; que ainda uma vez esta bebida de consolo e letargia distribua-se aos
nossos lábios ressecados; que ainda uma vez, após a luta, este banho morno
acolha nosso corpo fremente, a fim de que, purificado do suor, da poeira e do
sangue, revigorado, renovado, remoçado inconscientemente, dele emerja com sua
vitalidade e prazer originais. Ah! Meu amigo! Sempre senti e considerei o sono
como o mais beneficente e emocionante dos grandes fenômenos criadores do
impulso cego. Saímos da noite sem sofrimentos, para penetrar no dia, e
caminhamos. O sol é calcinante, andamos sobre espinhos e seixos cortantes.
Sentimos nosso peito sufocar. Que assustador seria se a ardente estrada da fadiga
se estendesse diante de nós sem fim provisório, sob uma luz cruz, a perder-se
de vista. Quem teria forças de percorrê-la até o fim? Quem não se prostraria
pelo desencorajamento e desgosto?
Mas eis a noite
materna que surge novamente, sempre novamente, sobre o caminho de Paixão da
vida. Cada dia tem um fim. Um bosque espera-nos, num murmúrio de fonte e numa
verde penumbra, onde um maravilhoso frescor recobrará sobre nossa fronte a paz
de nossa terra natal, então os braços estreitados num abraço, a cabeça tombada
para trás, os lábios entreabertos e os olhos afortunadamente revoltos,
penetramos numa sombra deliciosa.
Dizem que fui
criança tranquila, nem barulhenta nem agitada, mas inclinada ao torpor e à
sonolência, de um modo agradável para as mulheres que cuidavam de mim.
Acredito, pois lembro-me de amar o sono e o esquecimento numa época em que não
tinha nada a esquecer; e até me sinto capacitado para dizer que choque
espiritual provocou nesta silenciosa inclinação natural a transformação em
afeição consciente. Deu-se após eu ter ouvido o conto “O Homem Sem Sono”, a
história desse homem preso ao tempo e às suas próprias ações, com ardor tão
insensato, que maldizia o sono. Então, um anjo concedeu-lhe a realização de seu
desejo, tirando a sua necessidade física de dormir, soprou sobre seus olhos
para que eles se tornassem semelhantes a cinzentas pedras em suas órbitas e não
se fechassem jamais.
Como esse homem
lamentou seu pedido; o que então suportou, só, privado do sono entre todos os
homens; como o triste condenado arrastou sua vida, até o dia em que a morte o
libertou e quando a noite, que pairava inacessível diante de seus olhos de
pedra, atraiu-o até ela e para ela. Não poderia contá-lo com maiores detalhes,
todavia sei que durante aquela noite, não me continha de impaciência para que
me deixassem só em meu leito a fim de lançar-me no seio do sono; nunca dormi
tão profundamente como naquela noite em que ouvi essa história.
Desde então
sempre fiz distinção entre os livros que poderiam dizer algo em louvor ao sono;
e Mesmer, por exemplo, exprimiu-se bem de acordo comigo, quando sublinhou a
possibilidade de que o sono (que forma a base da vida vegetal, e do qual a
criança, em suas primeiras semanas de vida, sai apenas para alimentar-se) seja
talvez o estado natural, original do homem, aquele que corresponde mais
diretamente à finalidade do fenômeno de vegetação. “Não se poderia dizer,
propõe o genial charlatão, que apenas despertamos para dormir?” Julgo isso
extremamente bem pensado. Seguramente o estado de vigília é apenas uma luta
para preservar o sono. Darwin também não pensa que o espírito se desenvolveu
somente como uma arma na luta pela vida? Arma perigosa! Uma arma que, se nenhum
perigo ameaça nossa segurança, vira-se frequentemente contra nós. Felicitemo-nos
quando ela repousa, quando a chama crua e consumidora da consciência que temos
do mundo ao nosso redor e em nós próprios reduz satisfatoriamente sua
atividade, quando podemos, então, abandonarmo-nos novamente à nossa verdadeira
e feliz natureza.
Contudo, se a
angústia desperta-nos, não é ela que afinal nos afasta do sono. Acreditarias em
mim, se te dissesse que não conheço insônia causada por desgosto ou
preocupação? Só experimentei verdadeiro fervor pelo sono após ter passado a
primeira fase de liberdade, de intangibilidade, quando os desgostos da vida sob
a forma da escola começaram a turvar meus dias. Nunca mais formi tão
deliciosamente quanto durante algumas noites de domingo para segunda-feira,
quando após um dia protegido, pertencendo aos meus e a mim mesmo, a manhã
seguinte ameaçava-me novamente com dificuldades duras e estranhas. E isso
sempre acontece. Nunca durmo tão profundamente, sem experimento um retorno mais
doce ao seio da noite, que quando estou infeliz, quando o meu trabalho não foi bem
sucedido, quando o desespero me oprime, quando desgostoso dos homens encontro
refúgio nas trevas…; e como, pergunto, poderia ser de outro modo, já que é
naturalmente impossível que a inquietação e o sofrimento reforcem nossa afeição
ao dia e ao tempo?
Sorrirás se eu
te disse que preservo uma recordação precisa e reconhecida de cada leito no
qual dormi durante algum tempo, de cada um deles, desde a pequena cama de
grades com cortinas verdes, que foi o primeiro, até o imponente leito de acaju
onde nasci e que durante sucessivos anos reinou em meus apartamentos de jovem
celibatário? Atualmente possuo um leito mais leve, inglês, laqueado de branco.
Por cima está suspenso, numa moldura branca, este quadro francês intitulado
“Rumo à estrela”, o qual, com a sua atmosfera azul esmaecida, imprecisa e
musical, é o mais belo ornamento de alcova que posso imaginar… Sorrirás,
repito, contudo, que lugar insigne ocupa o leito em nosso mobiliário, este
móvel metafísico, onde os mistérios do nascimento e da morte se cumprem, este
habitáculo de linho perfumado, onde inconscientes, com os joelhos dobrados como
antigamente nas trevas do ventre materno, reatamos de alguma forma o cordão
umbilical da natureza, atraímos o sustento e a renovação por vias misteriosas…
Não seria como um barquinho mágico, posto de lado num canto, velado e discreto
durante o dia, e no qual, a cada noite, vagamos sobre o mar do inconsciente e
do infinito?
O mar! O
infinito! Meu amor pelo mar, que sempre preferi pela imensa uniformidade à
ambiciosa variedade de aspectos da montanha, é tão antigo quanto meu amor pelo
sono e sei perfeitamente onde essas duas simpatias encontram sua raiz comum.
Tenho em mim muito hinduísmo, muita nostalgia indolente e profunda, por esta
forma ou não-forma de perfeição chamada Nirvana ou o nada; e, ainda que
artista, tenho uma inclinação bem pouco artística pelo eterno, que se traduz
por uma aversão à articulação e à medida. O que contrabalança essa inclinação,
creia-me, é a correção e a disciplina; é, para empregar a palavra mais séria, a
moral… Ora o que é a moral? O que é a moral do artista?
A moral tem
duas faces, concentração e abandono, e uma sem a outra nunca é legítima. A
“concentração”, esta fecunda antítese da distração (a propósito da qual
Grillparzer cria seu sacerdote uma magnífica linguagem), é necessário havê-la
sentido para compreendê-la, não sendo raro que uma imagem particular provoque
em mim, sempre de novo, a impressão mais profunda dessa palavra: a imagem do
feto no ventre de sua mãe. Nossa cabeça, imagine, não se encontra redonda e
acabada de uma só vez, de modo a ter apenas que se desenvolver como um todo… A
princípio o rosto está aberto na frente, ele cresce pouco a pouco dos dois
lados para juntar-se no meio, fecha-se lenta e firmemente a fim de transformar-se
no rosto simétrico, dotado de visão, de vontade, individualmente condensado do
nosso “eu”… É este processo de junção, de acabamento, de formação para
tornar-se uma figura determinada, saído do mundo das possibilidades, é essa
imagem que me faz pressentir aquilo que afinal se consuma além da aparência.
Sinto, então, que toda existência individual deve ser compreendida como a
consequência de um ato de vontade supra-sensorial, de uma decisão de
concentrar-se fora do nada, de renunciar à liberdade, ao infinito, a dormitar e
a mover-se na noite imaterial e intemporal, uma decisão moral de existir e
sofrer. Sim tornar-se é, em si, um ato moral. De outra forma qual seria o
significado destas palavras proféticas: “Nosso maior pecado é o de ter
nascido?”… Só um boçal considera pecado e moralidade como conceitos opostos.
Eles formam apenas um. Sem o conhecimento do pecado, sem o abandono ao que é
funesto e nos consome, toda moral é uma afetação de virtude. Não são a pureza e
a ingenuidade que constituem o estado desejável no sentido moral, não são a
prudência egoísta e a arte desprezível de preservar a consciência tranquila que
formam o elemento moral, mas a luta e o desgosto, a paixão e o sofrimento.
“Aquele”, escreveu, em alguma parte, Heinrich von Kleist, “que ama a vida com
prudência já está moralmente morto, pois sua mais intensa força vital, que é de
podê-la sacrificar, atrofia-se, quando ele cerca-se de cuidados.” A palavra de
maior sentido moral do Evangelho é: “Não resista ao mal!”
A moral do
artista é a concentração, a força de concentrar-se egoisticamente, a decisão de
dar forma, de modelar, circunscrever, renunciar à liberdade, ao infinito, à
sonolência e ao movimento no domínio ilimitado da sensação. Enfim, a vontade de
criar uma obra. Mas quando desprovida de nobreza e moral, exangue e repulsiva,
é a obra nascida de uma arte fechada em si, prudente e virtuosa! A moral do
artista é abandono, afastamento e perda de si próprio, é luta e tormento,
aventura, conhecimento e paixão.
A moral é sem
dúvida o maior encargo da vida, é a própria vontade de viver, todavia se o fato
de se dizer que a vida é o bem supremo é mais que uma frase de teatro, então
deve existir algo maior e mais definitivo que essa vontade: assim como a moral
consiste em corrigir e disciplinar o que é livre e possível, para reconduzi-lo
ao limitado e ao real, por sua vez requer um corretivo, uma explicação, uma
exortação incessante (que não se pode deixar de ouvir) uma incitação ao
recolhimento e à renúncia… Dá a esse corretivo o nome de sabedoria e seu
contrário será a loucura do homem preso ao tempo e ao instante com tão cega
paixão que chega a maldizer o sono. Dá-lhe o nome de religiosidade, seu
contrário será a bestialidade ligada aos instintos pagãos e cuja fuça permanece
presa ao chão sem ver a grande paz estelar acima. Chama-lhe nobreza, seu
contrário será a vulgaridade que se encontra à vontade, inteiramente e sem
nostalgia, na vida e na realidade, que não conhece pátria superior; apesar de
que existem pessoas tão grosseiras, tão inabalavelmente eficientes que não se
pode imaginar sua morte, sua consagração à morte.
Se não é a
depressão que nos priva do sono, mas a paixão, chamada por Gotama Buda
“devoção”, a fervorosa ligação do nosso “eu” à atividade cotidiana, isso é
então mais que o sintoma de um estado nervoso. Significa que a nossa alma
perdeu sua pátria, que no seu ardor se afastou tanto que não consegue encontrar
o caminho do retorno; contudo, não é frequente termos a impressão que
precisamente os maiores e mais fortes homens de ação, os apaixonados, se
“reencontram” sempre com facilidade? Ouvi dizer que Napoleão podia adormecer
quando queria, em pleno dia, entre pessoas, no tumulto de uma batalha indecisa…
Enquanto penso
nisso, tenho sob os olhos esta imagem, sem grande valor artístico, cujo assunto
sempre exerceu sobre mim infinita fascinação. Intitula-se: “É Ele”. Representa
um pobre quarto de camponeses. Seus ocupantes, marido, mulher e filhos,
comprimem-se à beira da porta aberta, numa contemplação espantada. Pois lá, no
meio do cômodo, apoiado na modesta mesa, o Imperador está sentado e dorme. Está
sentado lá, este símbolo da paixão egoísta e exuberante, tirou sua espada, seu
punho descontraído repousa sobre a mesa, e com o queixo inclinado sobre o
peito, ele dorme. Não sente necessidade de silêncio, da obscuridade, nem mesmo
do travesseiro para esquecer o mundo. Sentou-se sobre a dura cadeira, a
primeira que surgiu, fechou os olhos, deixou tudo atrás de si e dorme.
Certamente, é
aquele que conserva pela noite mais fidelidade e nostalgia, aquele que todavia
durante o dia produz obras formidáveis. Eis por que prefiro a obra nascida da
“nostalgia da noite sagrada”, que, apesar de si mesma, volta-se para o
esplendor de sua vontade e embalo sonhador. Enquanto escrevo, ouço “Tristão” de
Richard Wagner. [Enquanto digito, ouço as suítes para violoncelo de J. S.
Bach.]