sexta-feira, 3 de abril de 2009

Uni-verso-para-lê-lo

Ele estava logo ali, sentado, quieto, fones no ouvido. Assim como eu, apreciava bolo de café recheado com chocolate. Pela presença, também tínhamos em comum o apreço pelo lugar; décimo quinto andar em um dos pontos mais alto da cidade. Àquela hora, final da tarde, a bela paisagem, paisagem urbana, a segunda natureza igualmente incontrolável ao redor desta ilha de tranquilidade. Lá embaixo, distante, filas intermináveis de carros, pessoas, casas edifícios. Esparsamente mas sempre presente, árvores. No horizonte uma parede de montanhas. Estávamos em um momento de ausência. Se fosse meditação, estaríamos naquele momento onde o corpo se acalmou, a mente está serena e a respiração suave. Todos os problemas estão distantes e bem próximo a nós somente o aroma do café, a textura e sabor do bolo e as pessoas ao redor comungando da mesma magia. Acho que foi por isto que me identifiquei com ele. Estávamos os dois tomando uma xícara de café e comendo um bolo recheado com chocolate bem cremoso. Até a música no fone de ouvido deveria ser a mesma, sorri comigo. Das belas coisas ao redor, ele me chamou a atenção. Não apenas pela coincidência dos atos mas pela tristeza que havia em seu olhar. Um homem bonito, não tão jovem, alguns cabelos grisalhos em um rosto suave contrastando com um olhar perdido e triste. Comecei a observar que ele falava consigo mesmo, sem palavras, apenas demonstrava expressões, o rosto girava buscando algo ou alguém que não estava ali. Pausava a conversa com suspiros profundos. Eu tentava disfarçar minha observação quase com indiscrição. Olhava de canto de olho, sem querer chamar a atenção ou me comprometer. Olhar esguio. Uma lágrima. Prendi minha respiração. Será que ele iria começar a chorar? Não. Disfarçou. Limpou a lágrima com a mão enquanto começava a sorrir, quase rir. Eu quase comecei a rir também. Que sujeito estranho, pensei. Não é bom prestar atenção em gente assim, instável. Tirei meus olhos dele, tinha terminado meu café com bolo, já era hora de me levantar e voltar à rotina. Arrumei as coisas da mesa para levá-las ao balcão. Já ia me levantar quando notei que ele já estava em pé. Caminhava na direção do canteiro de plantas que nos protegiam do abismo. Subiu na mureta usada para observação além das plantas. Ele ia observar a paisagem. Não. O que ele está fazendo? Perguntei a mim mesmo. Pela mureta ele conseguiu chegar ao canteiro de plantas, passou por elas e sumiu. Quero dizer, pulou. Não. Não foi um pulo ou um salto. Ele apenas continuou seu caminho. Ouvi o grito de uma mulher. Eu mesmo me levantei como em um susto, esbarrei na mesa, derrubei prato e xícara no chão. Uma confusão teve início, pessoas dizendo em voz alta: - Ele pulou, ele pulou. A frase se repetia entre espanto e dúvida. Todos foram até a beira do edifício tentando ver alguma coisa mas as plantas escondiam qualquer vestígio daquele ato, exceto por algumas folhas que se desalinharam no parapeito. Eu fiquei parado, tremendo. Todos começaram a sair em direção ao elevador para descer e ver o final da história. Eu estava tremendo muito, me sentei. Não entendia o que havia acontecido. Senti uma ruptura. Aquilo não era possível. Não seria verdadeira esta história, seria, talvez, algum trecho de livro ou conto bizarro. Fiquei sozinho naquele lugar. Continuava tremendo, incapaz de continuar, mas. Inspirar, expirar. Respirar. Nunca engoli algo tão difícil de tragar, nem mesmo o desprezo de quem amei. Quase engasguei com o vazio que se instalou no meu peito. Me levantei, meio zonzo. Consegui ir até o elevador e também desci. No térreo a multidão e confusão. Todos falando ao mesmo tempo e inventando suas histórias e a história daquele homem. Perguntas e respostas sendo delineadas ao mesmo tempo. Esta é uma das avenidas principais da cidade, o trânsito vai parar, os policiais vão chegar e ambulâncias também. Já temos a notícia para o jornal das oito e até mesmo algum helicóptero já esta a transmitir as imagens ao vivo daquele corpo estendido no chão. Me esquivo de tudo e de todos. Não é meu desejo ver a realidade. Atravesso um jardim de rosas e apareço em outra rua onde nada aconteceu. Os carros se movem, as pessoas estão felizes e satisfeitas com seus empregos e suas vidas. Todos caminham em direção a um destino, contentes consigo mesmas, talvez preocupadas, mas cientes de que este não é o momento para preocupação. Eu também pretendo continuar, não sei como, talvez esquecer esta história. Não vou dizer: eu conheci um suicida, eu fui a última pessoa a conversar com um suicida antes de ele tomar a direção que escolheu. Sim, eu conversei com ele. Na minha covardia, sem palavras, participei da conversa de um suicida consigo mesmo antes de seu ato final. Não vou dizer que o conhecia, pois um homem, este homem, que estava logo ali, sentado, quieto; era eu.

Um comentário:

I am theatre.... disse...

dói. o encontro, a perda. Mas também, um prazer, lá no fundo. percepção aguda de vida na morte. Um abraço.