O
modelo Peer-to-Peer
transformou a cooperação numa etapa fundamental da produção
cultural, tecnológica e econômica na sociedade contemporânea.
Nunca,
na história da cultura, tivemos tantas possibilidades de
descentralização dos meios de produção. Equipamentos digitais,
câmeras de vídeo, câmeras fotográficas, equipamentos para
músicos, DJs, produtores de audiovisual, computadores pessoais,
softwares livres, uma enorme capacidade em duplicação de CDs,
livros, música, que colocam em xeque o direito autoral tradicional e
fazem vislumbrar um capitalismo do excedente e da possibilidade da
livre circulação do conhecimento. Quais as bases “tecnológicas”
dessas mudanças?
Segundo
Michel Bauwens, em A
economia política da produção entre pares (The
political economy of peer production),
à medida que os sistemas sociais se transformam em redes
distribuídas, surge uma nova dinâmica produtiva: o modelo
Peer-to-Peer (P2P), ponto a ponto. Mais que uma nova tecnologia de
comunicação, é o modelo de funcionamento de novos processos
sociais. E faz surgir um terceiro modo de produção, de autoridade e
de propriedade, visando aumentar a participação generalizada de
atores equipotenciais. Suas características mais importantes,
segundo Bauwens, são: produção de valor de uso através da
cooperação livre entre produtos que têm acesso ao capital
distribuído; administração pela comunidade de produtores e não
por mecanismos de alocação do mercado ou por uma hierarquia
empresarial (“terceiro modo de autoridade”); disponibilizar
livremente o valor de uso segundo um princípio de universidade,
através de novos regimes de propriedade comum (“modo de
propriedade distribuída ou entre pares”). A infraestrutura do P2P
e das Redes Sociais Colaborativas tem algumas condições básicas,
propostas por Bauwens, necessárias para facilitar a emergência de
processos entre pares, que podemos resumir como: 1) A existência de
uma infraestrutura tecnológica instalada. Os movimentos para a
inclusão digital, os sistemas televisivos de file-serving
– TiVo – e as infraestruturas alternativas de telecomunicação
baseadas em meshworks
são representativos desta tendência; 2) A existência de sistemas
alternativos de informação e de comunicação que permitam a
comunicação autônoma entre agentes cooperantes. A Web permite a
produção, a disseminação e o consumo do material escrito, assim
como o podcasting
e o webcasting
criam uma infraestrutura alternativa de informação e comunicação
multimídia sem o intermédio dos meios de comunicação clássicos;
3) A existência de uma infraestrutura de software destinada à
cooperação autônoma global. Um número crescente de ferramentas de
colaboração que se inserem no software de redes sociais facilitam a
criação de confiança e capital social; 4) A existência de
infraestrutura legal que permita a criação de valor de uso e que o
proteja da apropriação privada. A General Public Licence (que
proíbe a apropriação do código software), a análoga Open Source
Initiative e certas versões da licença Creative Commons desempenham
esta função; 5) Por fim, o requisito cultural.
Para
Bauwens, assim como para Antônio Negri, Maurizio Lazzarato e os
teóricos do Capitalismo Cognitivo, esse requisito aponta para a
difusão da intelectualidade humana, com as transformações nas
formas de sentir e ser (ontologia), nas formas de conhecer
(epistemologia), e em valores que contribuem para a criação de um
“individualismo cooperativo”, uma das novas bases das redes
colaborativas.]
O
caso brasileiro
A
estas proposições de Bauwens podemos acrescentar a “dobra”
brasileira. Como enfrentar essa questão fugindo da criminalização
do produtor e do consumidor de bens culturais? Se um camelô vende CD
duplicado, DVD duplicado de música, de filme, se ele vende na porta
do show de funk o que o garoto acabou de ouvir e dançar e quer levar
para casa, será que o papel do Estado e das Corporações é
criminalizar esse consumidor, criador, propagador, esses agentes de
difusão virótica de cultura em que se transformaram os camelôs, os
adolescentes, as vídeo-locadoras, os cineclubes, os coletivos, os
blogueiros, as comunidades de troca de softwares, os produtores e
consumidores de cultura locais e globais?
Em
vez de reprimir, como legalizar “a cultura popular digital”
(Hermano Vianna) que está se formando? Que não é só a questão da
pirataria, é a oportunidade de um grupo de hip-hop ou de funk formar
sua equipe de som, tocar na favela, nas comunidades, nos clubes,
gravar sua música, queimar o seu CD e vender na porta do baile,
formando uma rede produtiva que dá trabalho, ocupação e sentido
para uma vida. Hoje, um computador pessoal de baixo custo e o acesso
à internet são bens culturais essenciais no capitalismo cognitivo,
pois o trabalho se tornou comunicacional e relacional. O desafio é
como universalizar e socializar esses meios de produção de
comunicação que são os meios de produção de cultura? Como apenas
10% da população brasileira possui computador em casa, então tem
que ter bolsa cultura, bolsa comunicação, bolsa informática e
colocar um computador funcionando em cada casa, centro, associação
de moradores, quiosques públicos. Comunicação e cultura
tornaram-se estratégicos para a sociedade civil. Nesse sentido, um
dos programas mais significativos do governo Lula são os Pontos de
Cultura, implementados pelo Ministério da Cultura em todo o país.
É
preciso reconhecer a dimensão produtiva desses movimentos que não
devem receber bolsas com contrapartidas, mas bolsas-investimento,
pois eles próprios já são a contrapartida (Giuseppe Cocco), são
os agentes produtivos que estão transformando realidades locais. São
modelos embrionários de transformação radical das políticas
públicas. São eles que produzem cultura a partir do local, vivem e
moram em territórios abandonados e revitalizados de dentro. Também
podemos falar de crise e extinção da tutela intelectual, econômica
sobre os movimentos, que desconfiam das relações assimétricas e do
roubo de capital simbólico e de um valor e um bem altamente valorado
no contexto contemporâneo: a produção de mundos. Dessa forma, é a
universidade, é a mídia, é o marketing social – ou o que eu
chamo de “a lavagem social” – que precisa das periferias para
se legitimar socialmente, intelectualmente
ou até economicamente.
Emergência
da cultura da periferia
A
ascensão e a visibilidade da produção cultural vinda das
periferias, subúrbios e favelas explicita esse novo valor. Uma
produção cultural deslocada que traz consigo embriões de políticas
públicas potenciais, com a possibilidade de redistribuição de
riqueza e de poder, constituindo-se também como lugar de trabalho
vivo e não meramente reprodutivo. Essa cultura das favelas e
periferias (música, teatro, dança, literatura, cinema) surge como
um discurso político “fora de lugar” e coloca em cenas novos
mediadores e produtores de cultura: rappers, funkeiros, b-boys,
jovens atores, performers, favelados, desempregados, subempregados,
produtores da chamada economia informal, grupos e discursos que vêm
revitalizando os territórios da pobreza e reconfigurando a cena
cultural urbana. Transitam pela cidade e ascendem à mídia de forma
muitas vezes ambígua, podendo assumir esse lugar de um discurso
político urgente e de renovação num capitalismo da informação.
A
cultura das favelas e periferias também é um contraponto para a
visão estereotipada das favelas como fábricas de morte e violência,
aspecto recorrente na mídia e no cinema que revela apenas a imagem
da favela-inferno. A complexidade e ambiguidade da “dobra”
brasileira no capitalismo global vem mostrando que as fábricas de
pobreza e violência são também territórios e redes de criação.
Essas vozes da periferia destituem os tradicionais mediadores da
cultura e passam de “objetos” a “sujeitos” do discruso,
concorrendo com os discursos da universidade e da mídia.
Nas
favelas e periferias produziram-se novas relações de vizinhança,
mutirões, redes de ajuda rizomáticas, cultura das festas, rituais
religiosos, samba, funk, hip-hop, todo um capital cultural e afetivo
forjado num ambiente de brutalidade compartilhado por diferentes
grupos sociais. Desses espaços surgem práticas de cultura,
estéticas e de redes políticas e de sociabilidade forjadas dentro
dos guetos, mas conectadas aos fluxos globais (não é só o tráfico
de drogas que consegue se globalizar) Grupos
e territórios locais apontando saídas possíveis, rompendo com o
velho “nacional-popular” populista e paternalista ou ideias
engessadas de “identidade nacional”, e surgindo como expressões
de um gueto global, dos guetos-mundo. Como falamos hoje de cidades
globais, com questões e problemas comuns. O novo produtor de cultura
das periferias faz parte de um precariado global: são os produtores
sem salário nem emprego. São os trabalhadores do imaterial.
Estado-Nação
versus Cidades da cooperação
Surgem
também novas alianças entre as favelas e outros grupos isolados,
como uma etapa no salto dos movimentos culturais locais e globais.
Cidades da cooperação que rivalizam com o Estado-Nação, e
funcionam à revelia dele. Movimentos que surgem da crise do Estado
como provedor. Mas como dar suporte a essas redes socioculturais?
Vivemos uma reestruturação produtiva. E na cultura isso é
explícito. A cultura é hoje o lugar do trabalho informal (não
assalariado). Movimentos que trabalham com informação, comunicação,
arte, conhecimento e que não estão nas grandes corporações. Uma
radicalização da democracia estimulando a produtividade social.
Essa experiência da cultura a partir dos movimentos socioculturais
surge como possibilidade de renovação radical das políticas
públicas. Não é só uma mudança da política para a cultura, mas
uma mudança da própria cultura política. São muitas iniciativas e
podemos destacar, dentre outras, a economia e a cultura do funk e do
hip-hop. São movimentos que produzem novas identidades e sentimentos
de pertencimento, de comunidade, para além da música, e criam
mundos e atividades produtivas. DJs, donos de equipamentos de som,
donos de vans, organizadores de bailes, seguranças e rappers.
Funkeiros que fazem até dez apresentações em bailes diferentes
numa única noite. Todo um ciclo econômico em torno da cultura
hip-hop e funk que explicita o primado da cultura na constituição
da economia cognitiva do capitalismo contemporâneo.
Os
movimentos culturais trabalham com uma ideia de educação não-formal
como porta de entrada para a educação formal e para o trabalho
vivo. Um movimento como o MST conseguiu construir escolas e propor
programas educativos com mais rapidez que muitas prefeituras no
interior do país. A produção cultural da periferia também não é
formal. É precária, informal, veloz, e se dá em redes
colaborativas, produzindo transferência de capital simbólico e real
sem os tradicionais mediadores culturais e de poder. Os movimentos
socioculturais podem atuar em todas as pontas: como produtores de
cultura, administradores e beneficiários do resultado da sua
produção. Se os atores culturais e sociais dispõem de recursos
intelectuais e materiais para assumirem esse protagonismo, qual o
papel das políticas públicas? Apoiar, estimular e promover, formar
lideranças, agentes de cultura, administradores de cultura, de
eventos culturais, dar as condições mínimas para esse
desenvolvimento.
Artigo
publicado em Global
Brasil.
Março,
abril e maio de 2007
Fonte: Caminhos para uma comunicação democrática. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2007. (Le Monde Diplomatique Brasil; 2) pp 111-119
Fonte: Caminhos para uma comunicação democrática. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2007. (Le Monde Diplomatique Brasil; 2) pp 111-119