Para
se desenvolver uma consciência coletiva crítica sobre como “funciona” a grande mídia brasileira, é importante a criação
e atuação de veículos de comunicação alternativos.”
A
constatação de que os grupos dominantes da grande mídia comercial
brasileira sempre se recusaram a admitir qualquer avanço, por menor
que seja, no sentido da democratização das comunicações, e sempre
conseguiram que seus interesses prevalecessem na regulação do
setor, provoca um inevitável desalento.
Qual
seria uma perspectiva realista para orientar a ação dos vários
grupos organizados da sociedade civil que reivindicam pelo menos ser
ouvidos na formulação das políticas públicas de comunicações? A
primeira e óbvia resposta a essa pergunta é que não se pode
ingenuamente acreditar que a grande mídia, privada e comercial, um
belo dia, posse a apoiar projetos de democratização da comunicação,
abra espaço para a pluralidade e a diversidade de vozes de nossa
sociedade. Isso não acontecerá.
O
jornalista Bernard Cassen considerou essa “crença” uma ilusão
fundamental daqueles que trabalham na perspectiva de que “um outro
mundo é possível” nas comunicações. Em geral, dizia ele, se
esquece que as empresas da grande mídia são atores centrais do
processo de globalização e, portanto, a crítica ao processo
deveria se dirigir igualmente a elas. Essa crítica direta, todavia,
não ocorre porque aqueles que mantêm relações privilegiadas com
jornalistas dessa grande mídia temem perder o acesso a ela. Ao se
iludirem com os pequenos e ocasionais espaços oferecidos, deixam de
investir naquilo que é de fato importante e estratégico. Essa
ilusão, aliás, é parte importante do problema. Na verdade, ainda é
extremamente restrito o segmento da população que percebe, com a
necessária clareza, o que está em jogo. Tendo em vista a
centralidade que ocupa nas sociedades contemporâneas, a mídia
constitui-se hoje em locus privilegiado das disputas de poder. Seu papel mais importante decorre
da capacidade que tem de “construir a realidade” através da
representação dos diferentes aspectos da vida humana, sobretudo, da
representação da própria política e dos políticos. É através
da mídia que a política é construída simbolicamente e que adquire
significado.
Trata-se,
portanto, de uma questão de poder e nenhum ator político cede poder
voluntariamente. O Executivo brasileiro, aparentemente, não tem tido
forças para confrontar os grupos dominantes de mídia privados, eles
próprios poderosos atores econômicos e políticos. Ao contrário,
deles depende e se vê na contingência de com eles negociar não só
as propostas de políticas públicas de comunicações, mas,
inclusive, propostas em outras áreas (economia, educação, esportes,
cultura etc.). Ademais, não se pode esquecer que os atores que
exercem o controle do poder político somente são sensíveis a
demandas que se expressem de forma organizada e representem
potencialmente uma ameaça à sua permanência no poder. Por exemplo:
no ano de 2005 foram realizadas duas marchas de setores organizados
da sociedade civil interessados na reforma agrária a Brasília: MST
e Contag. O Executivo, diante da demanda organizada, viu-se obrigado
a negociar e atender a várias reivindicações desses movimentos. Há
alguma possibilidade, a curto e médio prazos, de termos uma marcha a
Brasília de movimentos sociais organizados da sociedade civil
brasileira reivindicando a democratização das comunicações?
Ao
contrário de setores como saúde, habitação e educação, por
exemplo, as comunicações não são percebidas, pela imensa maioria
da população como um direito humano básico. E mais: não se
percebe como o controle da mídia pode determinar o próprio controle
do poder político. Desta forma, uma das tarefas claras dos segmentos
interessados na democratização da comunicação é trabalhar no
sentido de ampliar a consciência coletiva da importância crítica
deste setor para a democracia. Um dia ainda teremos as políticas
públicas de comunicações percebidas pela maioria da população
como já são hoje percebidas as políticas públicas de setores como
saúde, habitação e educação. Até lá, os interesses dos grandes
grupos privados de mídia certamente continuarão a prevalecer na
regulação das comunicações.
Essa
constatação, no entanto, não significa que nada há por fazer. Ao
contrário. Existem várias iniciativas que podem e devem ser tomadas
por instituições e movimentos da sociedade civil que trabalham na
perspectiva de que “um outro mundo é possível” nas comunicações
brasileiras. Alguns exemplos, não necessariamente na ordem de sua
relevância:
1.
A criação de jornais, revistas, emissoras de rádio, de televisão
e agências on-line, alternativos à grande mídia, deveria
constituir prioridade absoluta. É preciso que grupos empresariais
alternativos e organizações da sociedade civil, por exemplo,
disputem as novas concessões de radiodifusão quando licitadas pelo
Ministério das Comunicações. Ao contrário de países como México,
Espanha, Itália e França – para citar apenas alguns – até hoje
não se conseguiu, a não ser por curtos períodos, constituir no
Brasil uma mídia alternativa e economicamente viável. Existem
experiências, em andamento, com histórico e potencial para se
firmarem definitivamente no “mercado” brasileiro. Exemplos
importantes são a Carta Capital, a Agência Carta Maior, a revista Caros Amigos,
dentre outros.
2.
A municipalização da competência para legislar sobre rádios
comunitárias, apoiada em interpretação específica do inciso IV do
Artigo 22 da Constituição, defendida pelo jurista Paulo Fernando
Silveira, abre uma nova perspectiva para a comunicação comunitária.
Projetos de lei nesse sentido já foram aprovados em importantes
cidades, inclusive em São Paulo.
A
modificação da atual legislação restritiva da radiodifusão
comunitária; a regularização das emissoras de rádio que a grande
mídia chama de “piratas”; a criação de um fundo de apoio
público permanente para a radiodifusão comunitária; a suspensão
do fechamento de emissoras de rádio pela Anatel e o fim das prisões
que continuam sendo feitas pela Polícia Federal, são bandeiras
fundamentais.
3.
Uma das explicações oficiais utilizadas para justificar o recuo do
governo federal em relação as Retransmissoras de Televisão
Institucionais (RTVIs), em 2005, foi a necessidade de que
primeiramente funcionem os Conselhos Municipais de Comunicação
Social (CMCS) Esses CMCS podem ser criados por iniciativa de qualquer
vereador e basta a aprovação de uma lei municipal. Uma referência
possível, por exemplo, seria o CMCS de Porto Alegre que, embora não
tenha sido ainda institucionalizado, funcionou e tem projeto de lei
pronto.
4.
Acompanhar as renovações e as novas outorgas de concessões das
emissoras de rádio e de televisão existentes no município poderia
ser uma das primeiras tarefas desses CMCS. Nem todos sabem que as
emissoras de rádio e televisão são concessões públicas
precárias, de 10 a 15 anos, respectivamente. O verdadeiro dono do
serviço público de radiodifusão é o cidadão e não o empresário
privado que explora a concessão.
Os
CMCS deveriam obter junto ao Ministério das Comunicações a relação
das concessões existentes em seu município e as datas de vencimento
de cada uma delas. Essa informação deveria ser amplamente divulgada
na comunidade. Subcomissões dos CMCS poderiam ser criadas para
acompanhar as programações dessas emissoras que usariam como
critério de avaliação as normas estabelecidas no capítulo da
Comunicação Social da nossa Constituiçao (Artigos 220 a 224), ou
seja, a ausência de oligopólios e monopólios na mídia; a
preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e
informativas; a promoção da cultura nacional e regional; a
regionalização da produção cultural, artística e jornalística;
e a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
À
época da renovação dessas concessões, as avaliações feitas nas
comunidades deveriam ser encaminhadas à Comissão de Ciência e
Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos
Deputados – que julga os pedidos – com cópia para os deputados
federais da região e como expressão da opinião da comunidade.
Outra
tarefa dos CMCS poderia ser explicitar as relações existentes entre
os políticos profissionais e entidades concessionárias de rádio e
televisão. Como se sabe, há no Brasil um vínculo histórico entre
a mídia e as elites políticas locais e regionais, quase sempre
escamoteado, e que muitas vezes só se revela pelo conhecimento
direto das relações de parentesco nas comunidades.
A
existência dos CMCS não é, evidentemente, condição necessária
para que se realizem as tarefas acima sugeridas e tantas outras.
Qualquer grupo de cidadãos pode realizá-las.
5.
Embora a Constituição determine a observação do princípio da
complementaridade dos sistemas privado, público e estatal para a
outorga e renovação de concessões, permissões e autorizações de
radiodifusão (Artigo 223), ele não tem sido observado.
Nessa
perspectiva, o fortalecimento da mídia pública e da estatal –
federal, estadual e municipal – é necessário na busca do próprio
equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal A recente
Medida Provisória criando a Empresa Brasileira de Comunicação é
um importante avanço neste sentido. Resta garantir que a comunicação
pública tenha mecanismos institucionais, tanto de gestão como de
controle, que garantam sua autonomia e tal independência.
6.
Em diversos países do mundo os “observatórios de mídia”
exercem um papel permanente de reflexão crítica sobre o setor de
comunicações. Eles constituem a melhor maneira de avaliar a mídia
de acordo com seus próprios critérios: objetividade, neutralidade,
pluralidade, diversidade e localismo, dentre outros. O resultado é
que, frequentemente, a grande mídia é flagrada em contradição com
suas próprias normas.
Tornar
públicas essas contradições, além de aumentar a consciência
coletiva crítica sobre como “funciona” a grande mídia, exerce
também um importante papel pedagógico. Envolver sindicatos,
associações comunitárias, entidades estudantis e cursos de
comunicação no trabalho de “observação” permanente da grande
mídia é, portanto, tarefa básica.
7.
Os cursos de comunicação deveriam preparar seus milhares de alunos,
prioritariamente, para exercer sua profissão em uma nova mídia que
precisa também ser construída como alternativa à grande mídia
privada. Isso implica mudar os velhos paradigmas dominantes no ensino
e na pesquisa de comunicação. Não é tarefa simples, nem fácil.
No entanto, é absolutamente necessária.
Outras
iniciativas locais como a introdução nos currículos escolares de
disciplinas sobre a mídia; a criação de associações de ouvintes,
telespectadores e leitores; e a criação de circuitos alternativos
de cinema e vídeo, certamente, poderão ser tomadas.
Como
se vê, apesar do forte desequilíbrio existente na correlação de
forças entre os principais atores que têm interesses em jogo no
setor de comunicações, muito pode ser feito para a sua
democratização. Às vezes avanços não acontecem em razão de
muitas contradições e disputas internas existente dentro do próprio
campo alternativo. Esse é outro obstáculo histórico a ser superado
por aqueles que acreditam que “um outro mundo é possível” nas
comunicações brasileiras.
Outubro de 2007
Autor: Venício A. de Lima
Fonte: Caminhos para uma comunicação democrática. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2007. (Le Monde Diplomatique Brasil; 2) pp 83-91
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