domingo, 20 de março de 2016

O que fazer para democratizar as comunicações?

Para se desenvolver uma consciência coletiva crítica sobre como “funciona” a grande mídia brasileira, é importante a criação e atuação de veículos de comunicação alternativos.”

A constatação de que os grupos dominantes da grande mídia comercial brasileira sempre se recusaram a admitir qualquer avanço, por menor que seja, no sentido da democratização das comunicações, e sempre conseguiram que seus interesses prevalecessem na regulação do setor, provoca um inevitável desalento.
Qual seria uma perspectiva realista para orientar a ação dos vários grupos organizados da sociedade civil que reivindicam pelo menos ser ouvidos na formulação das políticas públicas de comunicações? A primeira e óbvia resposta a essa pergunta é que não se pode ingenuamente acreditar que a grande mídia, privada e comercial, um belo dia, posse a apoiar projetos de democratização da comunicação, abra espaço para a pluralidade e a diversidade de vozes de nossa sociedade. Isso não acontecerá.
O jornalista Bernard Cassen considerou essa “crença” uma ilusão fundamental daqueles que trabalham na perspectiva de que “um outro mundo é possível” nas comunicações. Em geral, dizia ele, se esquece que as empresas da grande mídia são atores centrais do processo de globalização e, portanto, a crítica ao processo deveria se dirigir igualmente a elas. Essa crítica direta, todavia, não ocorre porque aqueles que mantêm relações privilegiadas com jornalistas dessa grande mídia temem perder o acesso a ela. Ao se iludirem com os pequenos e ocasionais espaços oferecidos, deixam de investir naquilo que é de fato importante e estratégico. Essa ilusão, aliás, é parte importante do problema. Na verdade, ainda é extremamente restrito o segmento da população que percebe, com a necessária clareza, o que está em jogo. Tendo em vista a centralidade que ocupa nas sociedades contemporâneas, a mídia constitui-se hoje em locus privilegiado das disputas de poder. Seu papel mais importante decorre da capacidade que tem de “construir a realidade” através da representação dos diferentes aspectos da vida humana, sobretudo, da representação da própria política e dos políticos. É através da mídia que a política é construída simbolicamente e que adquire significado.
Trata-se, portanto, de uma questão de poder e nenhum ator político cede poder voluntariamente. O Executivo brasileiro, aparentemente, não tem tido forças para confrontar os grupos dominantes de mídia privados, eles próprios poderosos atores econômicos e políticos. Ao contrário, deles depende e se vê na contingência de com eles negociar não só as propostas de políticas públicas de comunicações, mas, inclusive, propostas em outras áreas (economia, educação, esportes, cultura etc.). Ademais, não se pode esquecer que os atores que exercem o controle do poder político somente são sensíveis a demandas que se expressem de forma organizada e representem potencialmente uma ameaça à sua permanência no poder. Por exemplo: no ano de 2005 foram realizadas duas marchas de setores organizados da sociedade civil interessados na reforma agrária a Brasília: MST e Contag. O Executivo, diante da demanda organizada, viu-se obrigado a negociar e atender a várias reivindicações desses movimentos. Há alguma possibilidade, a curto e médio prazos, de termos uma marcha a Brasília de movimentos sociais organizados da sociedade civil brasileira reivindicando a democratização das comunicações?
Ao contrário de setores como saúde, habitação e educação, por exemplo, as comunicações não são percebidas, pela imensa maioria da população como um direito humano básico. E mais: não se percebe como o controle da mídia pode determinar o próprio controle do poder político. Desta forma, uma das tarefas claras dos segmentos interessados na democratização da comunicação é trabalhar no sentido de ampliar a consciência coletiva da importância crítica deste setor para a democracia. Um dia ainda teremos as políticas públicas de comunicações percebidas pela maioria da população como já são hoje percebidas as políticas públicas de setores como saúde, habitação e educação. Até lá, os interesses dos grandes grupos privados de mídia certamente continuarão a prevalecer na regulação das comunicações.
Essa constatação, no entanto, não significa que nada há por fazer. Ao contrário. Existem várias iniciativas que podem e devem ser tomadas por instituições e movimentos da sociedade civil que trabalham na perspectiva de que “um outro mundo é possível” nas comunicações brasileiras. Alguns exemplos, não necessariamente na ordem de sua relevância:
1. A criação de jornais, revistas, emissoras de rádio, de televisão e agências on-line, alternativos à grande mídia, deveria constituir prioridade absoluta. É preciso que grupos empresariais alternativos e organizações da sociedade civil, por exemplo, disputem as novas concessões de radiodifusão quando licitadas pelo Ministério das Comunicações. Ao contrário de países como México, Espanha, Itália e França – para citar apenas alguns – até hoje não se conseguiu, a não ser por curtos períodos, constituir no Brasil uma mídia alternativa e economicamente viável. Existem experiências, em andamento, com histórico e potencial para se firmarem definitivamente no “mercado” brasileiro. Exemplos importantes são a Carta Capital, a Agência Carta Maior, a revista Caros Amigos, dentre outros.
2. A municipalização da competência para legislar sobre rádios comunitárias, apoiada em interpretação específica do inciso IV do Artigo 22 da Constituição, defendida pelo jurista Paulo Fernando Silveira, abre uma nova perspectiva para a comunicação comunitária. Projetos de lei nesse sentido já foram aprovados em importantes cidades, inclusive em São Paulo.
A modificação da atual legislação restritiva da radiodifusão comunitária; a regularização das emissoras de rádio que a grande mídia chama de “piratas”; a criação de um fundo de apoio público permanente para a radiodifusão comunitária; a suspensão do fechamento de emissoras de rádio pela Anatel e o fim das prisões que continuam sendo feitas pela Polícia Federal, são bandeiras fundamentais.
3. Uma das explicações oficiais utilizadas para justificar o recuo do governo federal em relação as Retransmissoras de Televisão Institucionais (RTVIs), em 2005, foi a necessidade de que primeiramente funcionem os Conselhos Municipais de Comunicação Social (CMCS) Esses CMCS podem ser criados por iniciativa de qualquer vereador e basta a aprovação de uma lei municipal. Uma referência possível, por exemplo, seria o CMCS de Porto Alegre que, embora não tenha sido ainda institucionalizado, funcionou e tem projeto de lei pronto.
4. Acompanhar as renovações e as novas outorgas de concessões das emissoras de rádio e de televisão existentes no município poderia ser uma das primeiras tarefas desses CMCS. Nem todos sabem que as emissoras de rádio e televisão são concessões públicas precárias, de 10 a 15 anos, respectivamente. O verdadeiro dono do serviço público de radiodifusão é o cidadão e não o empresário privado que explora a concessão.
Os CMCS deveriam obter junto ao Ministério das Comunicações a relação das concessões existentes em seu município e as datas de vencimento de cada uma delas. Essa informação deveria ser amplamente divulgada na comunidade. Subcomissões dos CMCS poderiam ser criadas para acompanhar as programações dessas emissoras que usariam como critério de avaliação as normas estabelecidas no capítulo da Comunicação Social da nossa Constituiçao (Artigos 220 a 224), ou seja, a ausência de oligopólios e monopólios na mídia; a preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; a promoção da cultura nacional e regional; a regionalização da produção cultural, artística e jornalística; e a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
À época da renovação dessas concessões, as avaliações feitas nas comunidades deveriam ser encaminhadas à Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados – que julga os pedidos – com cópia para os deputados federais da região e como expressão da opinião da comunidade.
Outra tarefa dos CMCS poderia ser explicitar as relações existentes entre os políticos profissionais e entidades concessionárias de rádio e televisão. Como se sabe, há no Brasil um vínculo histórico entre a mídia e as elites políticas locais e regionais, quase sempre escamoteado, e que muitas vezes só se revela pelo conhecimento direto das relações de parentesco nas comunidades.
A existência dos CMCS não é, evidentemente, condição necessária para que se realizem as tarefas acima sugeridas e tantas outras. Qualquer grupo de cidadãos pode realizá-las.
5. Embora a Constituição determine a observação do princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal para a outorga e renovação de concessões, permissões e autorizações de radiodifusão (Artigo 223), ele não tem sido observado.
Nessa perspectiva, o fortalecimento da mídia pública e da estatal – federal, estadual e municipal – é necessário na busca do próprio equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal A recente Medida Provisória criando a Empresa Brasileira de Comunicação é um importante avanço neste sentido. Resta garantir que a comunicação pública tenha mecanismos institucionais, tanto de gestão como de controle, que garantam sua autonomia e tal independência.
6. Em diversos países do mundo os “observatórios de mídia” exercem um papel permanente de reflexão crítica sobre o setor de comunicações. Eles constituem a melhor maneira de avaliar a mídia de acordo com seus próprios critérios: objetividade, neutralidade, pluralidade, diversidade e localismo, dentre outros. O resultado é que, frequentemente, a grande mídia é flagrada em contradição com suas próprias normas.
Tornar públicas essas contradições, além de aumentar a consciência coletiva crítica sobre como “funciona” a grande mídia, exerce também um importante papel pedagógico. Envolver sindicatos, associações comunitárias, entidades estudantis e cursos de comunicação no trabalho de “observação” permanente da grande mídia é, portanto, tarefa básica.
7. Os cursos de comunicação deveriam preparar seus milhares de alunos, prioritariamente, para exercer sua profissão em uma nova mídia que precisa também ser construída como alternativa à grande mídia privada. Isso implica mudar os velhos paradigmas dominantes no ensino e na pesquisa de comunicação. Não é tarefa simples, nem fácil. No entanto, é absolutamente necessária.
Outras iniciativas locais como a introdução nos currículos escolares de disciplinas sobre a mídia; a criação de associações de ouvintes, telespectadores e leitores; e a criação de circuitos alternativos de cinema e vídeo, certamente, poderão ser tomadas.
Como se vê, apesar do forte desequilíbrio existente na correlação de forças entre os principais atores que têm interesses em jogo no setor de comunicações, muito pode ser feito para a sua democratização. Às vezes avanços não acontecem em razão de muitas contradições e disputas internas existente dentro do próprio campo alternativo. Esse é outro obstáculo histórico a ser superado por aqueles que acreditam que “um outro mundo é possível” nas comunicações brasileiras.

Outubro de 2007
Autor: Venício A. de Lima
Fonte: Caminhos para uma comunicação democrática. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2007. (Le Monde Diplomatique Brasil; 2) pp 83-91

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