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terça-feira, 2 de abril de 2019

Leitura de I Ching com varetas

Durante muitos anos desenvolvi a prática de leitura do I Ching com varetas, estudando textos de C. G. Jung. A partir desta prática e dos estudos, preparei uma oficina de "Leitura do I Ching com varetas".

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Independência ou dívida?

O Brasil de fato conquistou a sua Independência pagando milhões de libras esterlinas a Portugal numa negociação mediada pelo Excelentíssimo Cavaleiro de Sua Majestade Britânica Sir Charles Stuard, Grão Cruz da Ordem da Torre e Espada, em 1825.
O Brasil comprou a sua Independência. O tratado que oficializou o ato, chamado de reconhecimento, foi publicado em vários jornais brasileiros, inclusive em Salvador. O Correio da Bahia publicou a íntegra do documento, em setembro de 1825; não fala em valores e para isso usa do eufemismo “aceitando a mediação de sua majestade britânica para o ajuste de toda a questão incidente à separação dos dois estados”. A “questão incidente” era de 2 milhões de libras esterlinas, valor pago a título de indenização.
Pelo tratado publicado no jornal baiano, em setembro de 1825, Portugal reconhece o Brasil como país independente e “promete não aceitar proposições de quaisquer colônias portuguesas para se reunirem ao Império do Brasil”. O dinheiro foi tomado de empréstimo nos bancos ingleses, mas não chegou na íntegra dos valores conveniados aos cofres de Portugal. A operação bancária passou por Londres que reteve 1,4 milhões de libras esterlinas, a título de pagamento da dívida externa de Portugal para com os britânicos. Está explicado o interesse dos britânicos em mediar o tratado.
Em 7 de setembro, D. Pedro proclamou a famosa frase: Independência ou Morte. Esse mote foi um impulso para a multiplicação de hinos, representações e sentimento de amor à pátria. Porém, nesse momento ainda não se tinha com precisão a data da independência. Em junho havia tido a convocação da Assembleia Constituinte para o Reino do Brasil, em outubro se deu a aclamação de D. Pedro I no Rio de Janeiro e somente em dezembro é que ele foi oficialmente coroado. Assim, a firmação do 7 de setembro como data oficial da Independência foi mais uma conveniência simbólica do processo todo.

sábado, 16 de junho de 2018

DA NECESSIDADE DE ESTUDAR HISTÓRIA

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"... o estudo da história visa acima de tudo nos tornar cientes de possibilidades que talvez não levássemos em consideração. Historiadores estudam o passado não para poder repeti-lo, e sim para poder se libertar dele.
Cada um de nós e todos nós nascemos numa determinada realidade histórica, governada por normas e valores específicos e conduzida por um sistema econômico ímpar. Vemos essa realidade como fato consumado e a achamos natural, inevitável e imutável. Esquecemos que nosso mundo foi criado numa cadeia de eventos acidental e que a história configurou não apenas a tecnologia, a política e a sociedade, mas também nossos pensamentos, temores e sonhos. A mão fria do passado emerge na direção de um único futuro. Sentimos essa constrição desde o momento em que nascemos, e assim presumimos que ela é parte natural e inescapável do que somos. Portanto, raramente tentamos nos livrar dela para antever futuros alternativos.
O ESTUDO DA HISTÓRIA TEM O OBJETIVO DE NOS LIVRAR DESSA SUBMISSÃO AO PASSADO. ELE NOS PERMITE VOLTAR A CABEÇA PARA MAIS DE UMA DIREÇÃO E COMEÇAR A PERCEBER POSSIBILIDADES INIMAGINÁVEIS PARA NOSSOS ANTEPASSADOS. AO OBSERVAR A CADEIA ACIDENTAL DE EVENTOS QUE NOS TROUXE ATÉ AQUI, NOS DAMOS CONTA DE COMO NOSSOS PENSAMENTOS E SONHOS GANHARAM FORMA - E PODEMOS COMEÇAR A PENSAR E SONHAR DE MODO DIFERENTE. O ESTUDO DA HISTÓRIA NÃO DIRÁ QUAL DEVE SER NOSSA ESCOLHA, MAS AO MENOS NOS DARÁ MAIS OPÇÕES."
(HOMO DEUS, de Yuval Noah Harari, p 67)

domingo, 21 de agosto de 2016

O início de uma nova ditadura no Brasil (?)

Há algum tempo estou postando e comentando que está em curso um novo golpe semelhante e duradouro ao que iniciou-se em 1964. É uma frase simples e que provoca reflexão. Mas será verdadeira? Não estou recorrendo à mesma estratégia da mídia manipuladora e dos defensores acéfalos da elite medíocre e reacionária existente em nosso país? Ou seja, não estou usando uma falácia poderosa para convencer leitores menos aparelhados conceitualmente? Existe realmente consistência crítica em minha afirmação?
Bem, como professor e estudioso de História, não posso me dar ao luxo de garantir minha afirmação apenas baseado em minha pressuposta experiência acadêmica e profissional. Portanto, me dispus a deixar a preguiça de lado e comecei a ler a obra de Elio Gaspari sobre a Ditadura Militar (seus quatro livros publicados até agora, A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada e a Ditadura Encurralada).
Comprei estes livros na época em que trabalhava na extinta Livraria Cultura e tinha o privilégio de adquirir mais livros do que era capaz de ler pois, sim, a leitura crítica exige esforço, o estudo sério exige esforço intelectual. E vem daí a crítica aos comentaristas e críticos sem consistência, sem formação e sem conteúdo. Repetir frases feitas é fácil. Decorar versículos bíblicos e usá-los como verdades absolutas é ainda mais fácil. Entender e compreender exige dedicação, exige tempo, exige esforço.
Para minha satisfação, logo no primeiro volume, A Ditadura Envergonhada – as ilusões armadas, Elio Gaspari faz uma “Introdução” à sua extensa obra onde já se evidencia muito do que estou afirmando. Não. Minha tarefa não se reduzirá à leitura de um único capítulo. Vou ler a obra toda. Se encontrar paradoxos ou antagonismos, estou pronto a enfrentá-los, sem medo, sem preguiça. Mas nesta pequena introdução (são apenas 20 páginas), Elio Gaspari destaca exatamente o aspecto de que comandar uma ação não implica que o resultado esteja sob seu comando. Existir uma boa intenção ao se defender uma ideia não implica que a realização desta ideia produza os efeitos esperados.
Assim, podemos aprender com um erro, ou repeti-lo até a morte. E o erro não está apenas no grupo de pobres empregados que defendem a riqueza de seus patrões. O erro está também em uma proposta de partido que se utiliza de concessões como forma de barganha do poder para efetivar seus projetos. Junto a forças maiores estão os interesses mesquinhos. No tabuleiro de xadrez movimentam-se peões e rainhas, peças brancas e peças pretas. E no tabuleiro da vida a diversidade das peças é tão imensa quanto o número de pessoas que dela participam.
A diferença está basicamente na instituição utilizada para efetivar o golpe nas diferentes épocas. Se em 1964 foi utilizado o poder militar para garantir o golpe, nos dias atuais está sendo utilizado o poder jurídico.
Enfim, não posso reproduzir aqui todas as vinte páginas da introdução da obra, mas recortei alguns trechos que destacam a minha ideia. Se alguém dispuser de tempo e disposição, poderá ler o capítulo todo, até mesmo a obra toda, porque não?

(21) INTRODUÇÃO
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(22) - Frota, nós não estamos mais nos entendendo. A sua administração no ministério não está seguindo o que combinamos. Além disso você é candidato a presidente e está em campanha. Eu não acho isso certo. Por isso preciso que você peça demissão.
- Eu não peço demissão – respondeu Frota.
- Bem, então vou demiti-lo. O cargo de ministro é meu, e não deposito mais em você a confiança necessária para mantê-lo. Se você não vai pedir demissão, vou exonerá-lo.
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(33) No início da noite do dia 12 o presidente empossou o novo ministro no palácio do Planalto, diante das principais autoridades do país. Nessa cerimônia deu-se um rápido episódio. Durou apenas alguns segundos, e, afora as pessoas nele envolvidas, ninguém o percebeu. Logo que Bethlem assinou o termo de posse, o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maciel, moveu-se na direção do general. Geisel, que estava ao seu lado, supôs que o jovem deputado fosse cumprimentar o ministro. Congelou a cena chamando Bethlem: “Ministro, quero apresentá-lo ao presidente da Câmara”. Passaram-se anos sem que Maciel desse importância ou buscasse explicação para a cena. Para Geisel, tudo fora muito simples: “Não é o presidente da Câmara quem se apresenta ao ministro (34) do Exército, mas o ministro do Exército, um colaborador do presidente, que deve ser apresentado ao presidente da Câmara”.
...
No dia 12 de outubro de 1977, com a demissão de Frota, dissolveu-se a mais perversa das anomalias introduzidas pela ditadura na vida política (35) brasileira, restabelecendo-se a autoridade constitucional do presidente da República sobre as Forças Armadas. Encerrou-se o ciclo aberto em 1964, no qual a figura do chefe do governo se confundia com a de representante da vontade militar, tornando-se ora seu delegado ora seu prisioneiro. A maioria dos instrumentos jurídicos do regime ditatorial sobreviveria ainda por alguns anos, mas a recuperação do poder republicano do presidente significou a disponibilidade do caminho da redemocratização. Paradoxalmente, essa restauração partiu não só de um presidente militar, mas do mais marcial dos generais que ocuparam a Presidência. Geisel restabeleceu o primado da Presidência por meio de uma crise militar da qual manteve afastados os políticos, a imprensa e a opinião pública. Podem-se contar nos dedos de uma só mão os civis que tiveram algum tipo de relevo na jornada de 12 de outubro e 1977. Nesse paradoxo, contudo, não está mais uma das charadas da vida política do país, e sim a solução do enigma que acompanha tanto os mecanismos pelos quais os militarem tomam o poder como aqueles pelos quais o deixam.
...
Desde 1968, quando através da vigência do Ato Institucional nº 5 o Brasil entrara no mais longo período ditatorial de sua história, dois presidentes prometeram restaurar as franquias democráticas. Geisel, o único a não fazer essa promessa, acabou com a ditadura. Entre 1974, ao assumir o governo, e 1979, ao deixá-lo, transformou uma Presidência inerte, entregue a um colegiado de superministros, num governo imperial. Converteu uma ditadura amorfa, sujeita a períodos de anarquia militar, num regime de poder pessoal, e quando consolidou esse poder – ao longo de um processo que culmina no dia 12 de outubro de 1977 – desmantelou o regime. Quando assumiu, havia uma ditadura sem ditador. No fim de seu governo, havia um ditador sem ditadura. No dia 31 de dezembro de 1978, 74 dias antes da conclusão de seu mandato, acabou-se o Ato Institucional (36) nº 5, o instrumento jurídico que vigorava por dez anos, por meio do qual o presidente podia fechar o Congresso, cassar mandatos parlamentares e governar por decretos uma sociedade onde não havia direito a habeas corpus em casos de crimes contra a segurança nacional. Antes, acabara com a censura à imprensa e com a tortura de presos políticos, pilares dor regime desde 1968.
O objetivo desta obra é contar por que e como Geisel e Golbery, dois militares que estiveram na origem da conspiração de 1964 e no centro do primeiro governo constituído após sua vitória, retornaram ao poder dez anos depois, com o propósito de desmontar a ditadura. Geisel era um moralista, defensor convicto de um Executivo forte, adversário do sufrágio universal como forma de escolha de governantes e crítico acerbo do Parlamento como instituição eficaz. Golbery, que em 1956 – em pleno governo constitucional – pedia a criação de um Serviço Nacional de Informações, fundou-o em 64 e dirigiu-o até 67. Conviveu com ele a partir de 1974, ajudou a transformar o seu chefe, general João Baptista Figueiredo, em presidente da República e, em 81, chamou sua criatura de “monstro”. Deixou o governo amaldiçoando o que se denominava Comunidade de Informações: “Vocês pensam que vão controlar o país cometendo crimes e encobrindo seus autores, mas estão muito enganados. Vão ser postos daqui para fora, com um pé na bunda”, disse Golbery ao general Octavio Aguiar de Medeiros, chefe do SNI, no dia em que saiu do palácio do Planalto, em agosto de 1981.
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(37) O Sacerdote e o Feiticeiro acreditavam no Brasil e nele mandaram como poucas pessoas o fizeram. Suas trajetórias ensinam como é fácil chegar a uma ditadura e como é difícil sair dela.
(38) … No poder, os generais raramente contam as maquinações políticas de que participam. …
O mais caudaloso dos generais que tomaram o poder no século XX, Charles de Gaulle, escreveu cinco volumes de memórias… Quando se trata de procurar os mecanismos políticos a que recorreu para desmontar a associação dos militares com a extrema direita, a repressão política e o colonialismo na Argélia, tudo somado não junta dez páginas.
É possível arriscar uma explicação para esse fenômeno. Os militares procuram preservar a própria mística segundo a qual, em quase todos os idiomas, as Forças Armadas, por suas virtudes, colocam-se acima dos partidos e da política civis. …
Se há uma grande diferença entre a política dos civis e a dos militares, ela está no fato de que esta envolve uma corporação burocrática fechada que precisa acima de tudo preservar alguma forma de coesão. … (39) Prefeitos e médicos podem brigar abertamente. Ambos podem mudar de partido, de hospital e, até mesmo, deixar a política ou a medicina. Os militares não podem fazer isso com a mesma facilidade, pois um capitão-de-fragata não pode trocar de Marinha nem um major de cavalaria, de Exército. Permanecendo na corporação, convivem com a mesma geração de colegas, respeitando praticamente a mesma hierarquia ao longo de todas as suas vidas. … Jamais se esquecem, por exemplo, os apelidos da juventude, ganhos no tempo das escolas militares. Para um aspirante dos anos 30, o Brasil foi presidido de 1964 a 1985 por Tamanco, Português, Milito, Alemão e Figa.
O silêncio dos generais foi compensado pela utilização maciça de conceitos teóricos. Com isso, frequentemente misturaram-se ideias brilhantes e preconceitos, dando-se força de dogma a algumas racionalizações que, no máximo, seriam bons instrumentos de especulação. Para explicar a brutalização da política, recorreu-se demais ao que se chama de Doutrina da Segurança Nacional ou, na sua denominação crítica, Ideologia da Segurança Nacional. …
...
(41) Para quem quiser cortar caminho na busca do motivo por que Geisel e Golbery desmontaram a ditadura, a resposta é simples: porque o regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, era uma grande bagunça.
Como ela tomou conta do país e como a desmancharam é uma história mais comprida. Começa na noite de 30 de março de 1964, quando a democracia brasileira tomou o caminho da breca.

 Gaspari, Elio. A Ditadura Envergonhada – as ilusões armadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

domingo, 20 de março de 2016

Redes colaborativas e precariado produtivo

O modelo Peer-to-Peer transformou a cooperação numa etapa fundamental da produção cultural, tecnológica e econômica na sociedade contemporânea.

Nunca, na história da cultura, tivemos tantas possibilidades de descentralização dos meios de produção. Equipamentos digitais, câmeras de vídeo, câmeras fotográficas, equipamentos para músicos, DJs, produtores de audiovisual, computadores pessoais, softwares livres, uma enorme capacidade em duplicação de CDs, livros, música, que colocam em xeque o direito autoral tradicional e fazem vislumbrar um capitalismo do excedente e da possibilidade da livre circulação do conhecimento. Quais as bases “tecnológicas” dessas mudanças?

Segundo Michel Bauwens, em A economia política da produção entre pares (The political economy of peer production), à medida que os sistemas sociais se transformam em redes distribuídas, surge uma nova dinâmica produtiva: o modelo Peer-to-Peer (P2P), ponto a ponto. Mais que uma nova tecnologia de comunicação, é o modelo de funcionamento de novos processos sociais. E faz surgir um terceiro modo de produção, de autoridade e de propriedade, visando aumentar a participação generalizada de atores equipotenciais. Suas características mais importantes, segundo Bauwens, são: produção de valor de uso através da cooperação livre entre produtos que têm acesso ao capital distribuído; administração pela comunidade de produtores e não por mecanismos de alocação do mercado ou por uma hierarquia empresarial (“terceiro modo de autoridade”); disponibilizar livremente o valor de uso segundo um princípio de universidade, através de novos regimes de propriedade comum (“modo de propriedade distribuída ou entre pares”). A infraestrutura do P2P e das Redes Sociais Colaborativas tem algumas condições básicas, propostas por Bauwens, necessárias para facilitar a emergência de processos entre pares, que podemos resumir como: 1) A existência de uma infraestrutura tecnológica instalada. Os movimentos para a inclusão digital, os sistemas televisivos de file-serving – TiVo – e as infraestruturas alternativas de telecomunicação baseadas em meshworks são representativos desta tendência; 2) A existência de sistemas alternativos de informação e de comunicação que permitam a comunicação autônoma entre agentes cooperantes. A Web permite a produção, a disseminação e o consumo do material escrito, assim como o podcasting e o webcasting criam uma infraestrutura alternativa de informação e comunicação multimídia sem o intermédio dos meios de comunicação clássicos; 3) A existência de uma infraestrutura de software destinada à cooperação autônoma global. Um número crescente de ferramentas de colaboração que se inserem no software de redes sociais facilitam a criação de confiança e capital social; 4) A existência de infraestrutura legal que permita a criação de valor de uso e que o proteja da apropriação privada. A General Public Licence (que proíbe a apropriação do código software), a análoga Open Source Initiative e certas versões da licença Creative Commons desempenham esta função; 5) Por fim, o requisito cultural.

Para Bauwens, assim como para Antônio Negri, Maurizio Lazzarato e os teóricos do Capitalismo Cognitivo, esse requisito aponta para a difusão da intelectualidade humana, com as transformações nas formas de sentir e ser (ontologia), nas formas de conhecer (epistemologia), e em valores que contribuem para a criação de um “individualismo cooperativo”, uma das novas bases das redes colaborativas.]

O caso brasileiro

A estas proposições de Bauwens podemos acrescentar a “dobra” brasileira. Como enfrentar essa questão fugindo da criminalização do produtor e do consumidor de bens culturais? Se um camelô vende CD duplicado, DVD duplicado de música, de filme, se ele vende na porta do show de funk o que o garoto acabou de ouvir e dançar e quer levar para casa, será que o papel do Estado e das Corporações é criminalizar esse consumidor, criador, propagador, esses agentes de difusão virótica de cultura em que se transformaram os camelôs, os adolescentes, as vídeo-locadoras, os cineclubes, os coletivos, os blogueiros, as comunidades de troca de softwares, os produtores e consumidores de cultura locais e globais?

Em vez de reprimir, como legalizar “a cultura popular digital” (Hermano Vianna) que está se formando? Que não é só a questão da pirataria, é a oportunidade de um grupo de hip-hop ou de funk formar sua equipe de som, tocar na favela, nas comunidades, nos clubes, gravar sua música, queimar o seu CD e vender na porta do baile, formando uma rede produtiva que dá trabalho, ocupação e sentido para uma vida. Hoje, um computador pessoal de baixo custo e o acesso à internet são bens culturais essenciais no capitalismo cognitivo, pois o trabalho se tornou comunicacional e relacional. O desafio é como universalizar e socializar esses meios de produção de comunicação que são os meios de produção de cultura? Como apenas 10% da população brasileira possui computador em casa, então tem que ter bolsa cultura, bolsa comunicação, bolsa informática e colocar um computador funcionando em cada casa, centro, associação de moradores, quiosques públicos. Comunicação e cultura tornaram-se estratégicos para a sociedade civil. Nesse sentido, um dos programas mais significativos do governo Lula são os Pontos de Cultura, implementados pelo Ministério da Cultura em todo o país.

É preciso reconhecer a dimensão produtiva desses movimentos que não devem receber bolsas com contrapartidas, mas bolsas-investimento, pois eles próprios já são a contrapartida (Giuseppe Cocco), são os agentes produtivos que estão transformando realidades locais. São modelos embrionários de transformação radical das políticas públicas. São eles que produzem cultura a partir do local, vivem e moram em territórios abandonados e revitalizados de dentro. Também podemos falar de crise e extinção da tutela intelectual, econômica sobre os movimentos, que desconfiam das relações assimétricas e do roubo de capital simbólico e de um valor e um bem altamente valorado no contexto contemporâneo: a produção de mundos. Dessa forma, é a universidade, é a mídia, é o marketing social – ou o que eu chamo de “a lavagem social” – que precisa das periferias para se legitimar socialmente, intelectualmente ou até economicamente.

Emergência da cultura da periferia

A ascensão e a visibilidade da produção cultural vinda das periferias, subúrbios e favelas explicita esse novo valor. Uma produção cultural deslocada que traz consigo embriões de políticas públicas potenciais, com a possibilidade de redistribuição de riqueza e de poder, constituindo-se também como lugar de trabalho vivo e não meramente reprodutivo. Essa cultura das favelas e periferias (música, teatro, dança, literatura, cinema) surge como um discurso político “fora de lugar” e coloca em cenas novos mediadores e produtores de cultura: rappers, funkeiros, b-boys, jovens atores, performers, favelados, desempregados, subempregados, produtores da chamada economia informal, grupos e discursos que vêm revitalizando os territórios da pobreza e reconfigurando a cena cultural urbana. Transitam pela cidade e ascendem à mídia de forma muitas vezes ambígua, podendo assumir esse lugar de um discurso político urgente e de renovação num capitalismo da informação.

A cultura das favelas e periferias também é um contraponto para a visão estereotipada das favelas como fábricas de morte e violência, aspecto recorrente na mídia e no cinema que revela apenas a imagem da favela-inferno. A complexidade e ambiguidade da “dobra” brasileira no capitalismo global vem mostrando que as fábricas de pobreza e violência são também territórios e redes de criação. Essas vozes da periferia destituem os tradicionais mediadores da cultura e passam de “objetos” a “sujeitos” do discruso, concorrendo com os discursos da universidade e da mídia.

Nas favelas e periferias produziram-se novas relações de vizinhança, mutirões, redes de ajuda rizomáticas, cultura das festas, rituais religiosos, samba, funk, hip-hop, todo um capital cultural e afetivo forjado num ambiente de brutalidade compartilhado por diferentes grupos sociais. Desses espaços surgem práticas de cultura, estéticas e de redes políticas e de sociabilidade forjadas dentro dos guetos, mas conectadas aos fluxos globais (não é só o tráfico de drogas que consegue se globalizar) Grupos e territórios locais apontando saídas possíveis, rompendo com o velho “nacional-popular” populista e paternalista ou ideias engessadas de “identidade nacional”, e surgindo como expressões de um gueto global, dos guetos-mundo. Como falamos hoje de cidades globais, com questões e problemas comuns. O novo produtor de cultura das periferias faz parte de um precariado global: são os produtores sem salário nem emprego. São os trabalhadores do imaterial.

Estado-Nação versus Cidades da cooperação

Surgem também novas alianças entre as favelas e outros grupos isolados, como uma etapa no salto dos movimentos culturais locais e globais. Cidades da cooperação que rivalizam com o Estado-Nação, e funcionam à revelia dele. Movimentos que surgem da crise do Estado como provedor. Mas como dar suporte a essas redes socioculturais? Vivemos uma reestruturação produtiva. E na cultura isso é explícito. A cultura é hoje o lugar do trabalho informal (não assalariado). Movimentos que trabalham com informação, comunicação, arte, conhecimento e que não estão nas grandes corporações. Uma radicalização da democracia estimulando a produtividade social. Essa experiência da cultura a partir dos movimentos socioculturais surge como possibilidade de renovação radical das políticas públicas. Não é só uma mudança da política para a cultura, mas uma mudança da própria cultura política. São muitas iniciativas e podemos destacar, dentre outras, a economia e a cultura do funk e do hip-hop. São movimentos que produzem novas identidades e sentimentos de pertencimento, de comunidade, para além da música, e criam mundos e atividades produtivas. DJs, donos de equipamentos de som, donos de vans, organizadores de bailes, seguranças e rappers. Funkeiros que fazem até dez apresentações em bailes diferentes numa única noite. Todo um ciclo econômico em torno da cultura hip-hop e funk que explicita o primado da cultura na constituição da economia cognitiva do capitalismo contemporâneo.

Os movimentos culturais trabalham com uma ideia de educação não-formal como porta de entrada para a educação formal e para o trabalho vivo. Um movimento como o MST conseguiu construir escolas e propor programas educativos com mais rapidez que muitas prefeituras no interior do país. A produção cultural da periferia também não é formal. É precária, informal, veloz, e se dá em redes colaborativas, produzindo transferência de capital simbólico e real sem os tradicionais mediadores culturais e de poder. Os movimentos socioculturais podem atuar em todas as pontas: como produtores de cultura, administradores e beneficiários do resultado da sua produção. Se os atores culturais e sociais dispõem de recursos intelectuais e materiais para assumirem esse protagonismo, qual o papel das políticas públicas? Apoiar, estimular e promover, formar lideranças, agentes de cultura, administradores de cultura, de eventos culturais, dar as condições mínimas para esse desenvolvimento.
Artigo publicado em Global Brasil.
Março, abril e maio de 2007
Fonte: Caminhos para uma comunicação democrática. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2007. (Le Monde Diplomatique Brasil; 2) pp 111-119

O que fazer para democratizar as comunicações?

Para se desenvolver uma consciência coletiva crítica sobre como “funciona” a grande mídia brasileira, é importante a criação e atuação de veículos de comunicação alternativos.”

A constatação de que os grupos dominantes da grande mídia comercial brasileira sempre se recusaram a admitir qualquer avanço, por menor que seja, no sentido da democratização das comunicações, e sempre conseguiram que seus interesses prevalecessem na regulação do setor, provoca um inevitável desalento.
Qual seria uma perspectiva realista para orientar a ação dos vários grupos organizados da sociedade civil que reivindicam pelo menos ser ouvidos na formulação das políticas públicas de comunicações? A primeira e óbvia resposta a essa pergunta é que não se pode ingenuamente acreditar que a grande mídia, privada e comercial, um belo dia, posse a apoiar projetos de democratização da comunicação, abra espaço para a pluralidade e a diversidade de vozes de nossa sociedade. Isso não acontecerá.
O jornalista Bernard Cassen considerou essa “crença” uma ilusão fundamental daqueles que trabalham na perspectiva de que “um outro mundo é possível” nas comunicações. Em geral, dizia ele, se esquece que as empresas da grande mídia são atores centrais do processo de globalização e, portanto, a crítica ao processo deveria se dirigir igualmente a elas. Essa crítica direta, todavia, não ocorre porque aqueles que mantêm relações privilegiadas com jornalistas dessa grande mídia temem perder o acesso a ela. Ao se iludirem com os pequenos e ocasionais espaços oferecidos, deixam de investir naquilo que é de fato importante e estratégico. Essa ilusão, aliás, é parte importante do problema. Na verdade, ainda é extremamente restrito o segmento da população que percebe, com a necessária clareza, o que está em jogo. Tendo em vista a centralidade que ocupa nas sociedades contemporâneas, a mídia constitui-se hoje em locus privilegiado das disputas de poder. Seu papel mais importante decorre da capacidade que tem de “construir a realidade” através da representação dos diferentes aspectos da vida humana, sobretudo, da representação da própria política e dos políticos. É através da mídia que a política é construída simbolicamente e que adquire significado.
Trata-se, portanto, de uma questão de poder e nenhum ator político cede poder voluntariamente. O Executivo brasileiro, aparentemente, não tem tido forças para confrontar os grupos dominantes de mídia privados, eles próprios poderosos atores econômicos e políticos. Ao contrário, deles depende e se vê na contingência de com eles negociar não só as propostas de políticas públicas de comunicações, mas, inclusive, propostas em outras áreas (economia, educação, esportes, cultura etc.). Ademais, não se pode esquecer que os atores que exercem o controle do poder político somente são sensíveis a demandas que se expressem de forma organizada e representem potencialmente uma ameaça à sua permanência no poder. Por exemplo: no ano de 2005 foram realizadas duas marchas de setores organizados da sociedade civil interessados na reforma agrária a Brasília: MST e Contag. O Executivo, diante da demanda organizada, viu-se obrigado a negociar e atender a várias reivindicações desses movimentos. Há alguma possibilidade, a curto e médio prazos, de termos uma marcha a Brasília de movimentos sociais organizados da sociedade civil brasileira reivindicando a democratização das comunicações?
Ao contrário de setores como saúde, habitação e educação, por exemplo, as comunicações não são percebidas, pela imensa maioria da população como um direito humano básico. E mais: não se percebe como o controle da mídia pode determinar o próprio controle do poder político. Desta forma, uma das tarefas claras dos segmentos interessados na democratização da comunicação é trabalhar no sentido de ampliar a consciência coletiva da importância crítica deste setor para a democracia. Um dia ainda teremos as políticas públicas de comunicações percebidas pela maioria da população como já são hoje percebidas as políticas públicas de setores como saúde, habitação e educação. Até lá, os interesses dos grandes grupos privados de mídia certamente continuarão a prevalecer na regulação das comunicações.
Essa constatação, no entanto, não significa que nada há por fazer. Ao contrário. Existem várias iniciativas que podem e devem ser tomadas por instituições e movimentos da sociedade civil que trabalham na perspectiva de que “um outro mundo é possível” nas comunicações brasileiras. Alguns exemplos, não necessariamente na ordem de sua relevância:
1. A criação de jornais, revistas, emissoras de rádio, de televisão e agências on-line, alternativos à grande mídia, deveria constituir prioridade absoluta. É preciso que grupos empresariais alternativos e organizações da sociedade civil, por exemplo, disputem as novas concessões de radiodifusão quando licitadas pelo Ministério das Comunicações. Ao contrário de países como México, Espanha, Itália e França – para citar apenas alguns – até hoje não se conseguiu, a não ser por curtos períodos, constituir no Brasil uma mídia alternativa e economicamente viável. Existem experiências, em andamento, com histórico e potencial para se firmarem definitivamente no “mercado” brasileiro. Exemplos importantes são a Carta Capital, a Agência Carta Maior, a revista Caros Amigos, dentre outros.
2. A municipalização da competência para legislar sobre rádios comunitárias, apoiada em interpretação específica do inciso IV do Artigo 22 da Constituição, defendida pelo jurista Paulo Fernando Silveira, abre uma nova perspectiva para a comunicação comunitária. Projetos de lei nesse sentido já foram aprovados em importantes cidades, inclusive em São Paulo.
A modificação da atual legislação restritiva da radiodifusão comunitária; a regularização das emissoras de rádio que a grande mídia chama de “piratas”; a criação de um fundo de apoio público permanente para a radiodifusão comunitária; a suspensão do fechamento de emissoras de rádio pela Anatel e o fim das prisões que continuam sendo feitas pela Polícia Federal, são bandeiras fundamentais.
3. Uma das explicações oficiais utilizadas para justificar o recuo do governo federal em relação as Retransmissoras de Televisão Institucionais (RTVIs), em 2005, foi a necessidade de que primeiramente funcionem os Conselhos Municipais de Comunicação Social (CMCS) Esses CMCS podem ser criados por iniciativa de qualquer vereador e basta a aprovação de uma lei municipal. Uma referência possível, por exemplo, seria o CMCS de Porto Alegre que, embora não tenha sido ainda institucionalizado, funcionou e tem projeto de lei pronto.
4. Acompanhar as renovações e as novas outorgas de concessões das emissoras de rádio e de televisão existentes no município poderia ser uma das primeiras tarefas desses CMCS. Nem todos sabem que as emissoras de rádio e televisão são concessões públicas precárias, de 10 a 15 anos, respectivamente. O verdadeiro dono do serviço público de radiodifusão é o cidadão e não o empresário privado que explora a concessão.
Os CMCS deveriam obter junto ao Ministério das Comunicações a relação das concessões existentes em seu município e as datas de vencimento de cada uma delas. Essa informação deveria ser amplamente divulgada na comunidade. Subcomissões dos CMCS poderiam ser criadas para acompanhar as programações dessas emissoras que usariam como critério de avaliação as normas estabelecidas no capítulo da Comunicação Social da nossa Constituiçao (Artigos 220 a 224), ou seja, a ausência de oligopólios e monopólios na mídia; a preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; a promoção da cultura nacional e regional; a regionalização da produção cultural, artística e jornalística; e a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
À época da renovação dessas concessões, as avaliações feitas nas comunidades deveriam ser encaminhadas à Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados – que julga os pedidos – com cópia para os deputados federais da região e como expressão da opinião da comunidade.
Outra tarefa dos CMCS poderia ser explicitar as relações existentes entre os políticos profissionais e entidades concessionárias de rádio e televisão. Como se sabe, há no Brasil um vínculo histórico entre a mídia e as elites políticas locais e regionais, quase sempre escamoteado, e que muitas vezes só se revela pelo conhecimento direto das relações de parentesco nas comunidades.
A existência dos CMCS não é, evidentemente, condição necessária para que se realizem as tarefas acima sugeridas e tantas outras. Qualquer grupo de cidadãos pode realizá-las.
5. Embora a Constituição determine a observação do princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal para a outorga e renovação de concessões, permissões e autorizações de radiodifusão (Artigo 223), ele não tem sido observado.
Nessa perspectiva, o fortalecimento da mídia pública e da estatal – federal, estadual e municipal – é necessário na busca do próprio equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal A recente Medida Provisória criando a Empresa Brasileira de Comunicação é um importante avanço neste sentido. Resta garantir que a comunicação pública tenha mecanismos institucionais, tanto de gestão como de controle, que garantam sua autonomia e tal independência.
6. Em diversos países do mundo os “observatórios de mídia” exercem um papel permanente de reflexão crítica sobre o setor de comunicações. Eles constituem a melhor maneira de avaliar a mídia de acordo com seus próprios critérios: objetividade, neutralidade, pluralidade, diversidade e localismo, dentre outros. O resultado é que, frequentemente, a grande mídia é flagrada em contradição com suas próprias normas.
Tornar públicas essas contradições, além de aumentar a consciência coletiva crítica sobre como “funciona” a grande mídia, exerce também um importante papel pedagógico. Envolver sindicatos, associações comunitárias, entidades estudantis e cursos de comunicação no trabalho de “observação” permanente da grande mídia é, portanto, tarefa básica.
7. Os cursos de comunicação deveriam preparar seus milhares de alunos, prioritariamente, para exercer sua profissão em uma nova mídia que precisa também ser construída como alternativa à grande mídia privada. Isso implica mudar os velhos paradigmas dominantes no ensino e na pesquisa de comunicação. Não é tarefa simples, nem fácil. No entanto, é absolutamente necessária.
Outras iniciativas locais como a introdução nos currículos escolares de disciplinas sobre a mídia; a criação de associações de ouvintes, telespectadores e leitores; e a criação de circuitos alternativos de cinema e vídeo, certamente, poderão ser tomadas.
Como se vê, apesar do forte desequilíbrio existente na correlação de forças entre os principais atores que têm interesses em jogo no setor de comunicações, muito pode ser feito para a sua democratização. Às vezes avanços não acontecem em razão de muitas contradições e disputas internas existente dentro do próprio campo alternativo. Esse é outro obstáculo histórico a ser superado por aqueles que acreditam que “um outro mundo é possível” nas comunicações brasileiras.

Outubro de 2007
Autor: Venício A. de Lima
Fonte: Caminhos para uma comunicação democrática. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2007. (Le Monde Diplomatique Brasil; 2) pp 83-91

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Uma oração para atingir os bem-de-vida com o máximo possível de aflições

Eu já faço uma oração semelhante embora tenha sido bastante recriminado por puristas e pessoas politicamente corretas. Eu sei. Eu tento buscar a ahimsa... mas eu sou um ser humano repleto de contradições.
Esta oração foi feita por um norte-americano para norte-americanos. Nós poderíamos (eu pretendo, colaborações serão bem-vindas) escrever uma adaptação para a realidade brasileira que, analisando bem, não é tão diferente.

A ORAÇÃO DO POVO
Moore, Michael. Stupid White Men: uma nação de idiotas. São Paulo: Francis, 2003.
Cap. 11; pp 237-243.

     Acho que foi Tomás de Aquino que observou uma vez: “Nada como sua própria merda para fazer-lhe perceber o quanto você fede”.
     Em julho de 2001, Nancy Reagan, na ocasião numa ronda incansável ao redor do leito de morte do marido, despachou os antigos capangas de Reagan, Michael Deaver e Kenneth Duberstein, para Washington, D.C., com uma mensagem confidencial a George W. Bush e à liderança republicana. O partido havia se dividido sobre a questão da pesquisa relacionada às células-tronco, a avançada ciência que retira células precursoras de embriões humanos rejeitados e as usa para tratar de pessoas com doenças debilitantes, como o mal de Alzheimer (enfermidade que castigava o ex-presidente Reagan), ou para encontrar a cura para outras doenças fatais. Os fanáticos militantes contra o aborto (incluindo aí os Reagan e os Bush), que haviam controlado o partido por décadas, exigiram que não houvesse pesquisa embrionária alguma, independentemente do sofrimento dos vivos.
     W. desejava banir a pesquisa, dizendo à opinião pública, em resumo, que enxergava bebezinhos vivos naqueles embriões mortos. Acho que ele tinha medo de que as mulheres saíssem correndo para fertilizar seus óvulos só com o intuito de obter um embrião, que depois abortariam e venderiam para centros de pesquisa (tal é o nível da fantasia dos doidos conservadores que governam este país).
     Mas agora os parafusos frouxos estavam sendo apertados, pois um certo número de conservadores, de Thommy Thompson a Connie Mack, estava aprovando a pesquisa das células-tronco, declarando que este estudo não tinha nada a ver com a retirada de “vidas humanas”. De repente, a mídia ficou repleta de reportagens sobre o motim conservador em relação a essa questão. A Right to Life [organização que tem um enorme poder de lobby no EUA] foi à guerra para conter a maré em direção à razão.
     Nada daquilo, no entanto, parecia intimidar ou comover W., mais preocupado com a marca de creme dental que o primeiro-ministro britânico usava do que com a mudança de sua posição a respeito do aborto.
     Mas então Nancy mudou de ideia: a quase-viúva pediu a Bush para mudar de ideia e aprovar, apoiar, financiar e patrocinar a pesquisa das células-tronco. A pesquisa, transmitiu ela aos quatro ventos por intermédio de seus garotos de recado, poderia salvar Ronnie ou os futuros Ronnies dos males de Alzheimer, Parkinson, Lou Gehrig e de outras doenças catastróficas. Nos últimos anos, Nancy já vinha modificando sua posição em relação ao aborto e agora saía do armário pela primeira vez e afirmava que um embrião NÃO é um ser humano.
     Naquele momento, todo o time mudou de campo. A convocação da diretoria havia sido feita: DANEM-SE OS NÃO-NASCIDOS! SALVEM OS “GIPPER”! [designação dada a um grupo conservador e neo-liberal; usada com frequência como apelido de Ronald Reagam].
     E dito e feito. Em poucos dias, os princípios de Baby Bush desapareceram mais rápido que uma estagiária de Condit [Gary Condit, congressista democrata que teve um caso adúltero escandaloso com uma jovem estagiária descoberta morta num parque de Washington, D.C. O caso dos dois foi revelado quando ela desapareceu. Um ano depois, descobriram que ele não foi responsável pelo desaparecimento da jovem. Mesmo assim, Condit perdeu a reeleição. (n.t.)]. Uma ordem veio da Casa branca afirmando que agora não havia nada de errado com “determinada” pesquisa de células-tronco. Bush foi à TV e nada disse a respeito de embriões humanos serem considerados seres humanos. Depois de décadas empurrando goela abaixo que “a vida humana começa na concepção”, vinham agora os mesmos indivíduos que jogaram no lixo o direito da mulher ao aborto nos dizer que estes “bebês não-nascidos” não era nada mais que um monte de tecido embrionário morto – que, aliás, poderia muito bem manter vios por mais uns anos alguns doentes ricaços!
     Em todo o país, outros chefões republicanos juntaram-se ao clamor por mais pesquisas relacionadas às células-tronco. Orrin Hatch [senador republicano, conservador famoso por ser contrário ao aborto (n.t.)] liderou o comando, dizendo: “Não é uma questão de destruição da vida humana, é uma questão de facilitar a vida humana”. Até mesmo Strom “só-em-casos-de-estupro-e-incesto” Thurmond concordou: “Potencialmente, a pesquisa das células tronco pode tratar e curar enfermidades como esclerose múltipla, mal de Alzheimer, mal de Parkinson, doenças cardíacas, vários tipos de câncer e diabetes... Apoio essa ciência pioneira e o patrocínio federal a essa pesquisa”, disse o velho, cuja filha, não tão coincidentemente, sofre de diabetes juvenil.
     Não há nada mais amável que um hipócrita sem-vergonha de direita. Eles passam a vida inteira tornando a vida de todo mundo um inferno mas, assim que um pouquinho de desgraça atinge suas vidinhas, o que vale é “dane-se a ideologia – queremos resultados!” Eles devotam todas as suas energias durante anos para dificultar que negros, garotas ou caras que curtem caras desenvolvam-se ou sejam tratados com um mínimo de dignidade, mas na hora que alguém de sua família está sendo prejudicado – ooopa, é melhor você sair da frente do meu filho, rapaz – ele é especial!
     Reagan, Bush, Cheney e todo o seu time são responsáveis por décadas de legislação cruel, elaborada para punir os pobres, prender os que sofrem de problemas de saúde (viciados em drogas) ou cortas os direitos de pessoas desesperadas que vivem “ilegalmente” nos Estados Unidos. Mas, quando eles se encontram em uma situação de desespero, de repente adquirem a compaixão de São Francisco e a misericórdia de Madre Teresa.
     É missão de vida para os ricos e poderosos destruir nosso ar, poluir nossa água, assaltar nossos bolsos e fazer com que seja impossível que consigamos qualquer ajuda na janelinha do guichê, mas quando seus atos começam a assombrar suas vidas, não perdem tempo caçando culpados – procuram logo um jeito de nos dar esmolas.
     Bem, acho que isso é bom! Vamos esperar que consigam tudo o que querem. Se é preciso uma tragédia pessoal para que eles readquiram à sã consciência, que seja. Afinal de contas, apesar de suas casas de sete banheiros e de suas garagens cheias de Bentleys, eles são gente como a gente. São H-U-M-A-N-O-S. E quando uma pessoa querida de sua convivência está numa cama, molhando sem parar suas fraldas geriátricas, mijando toda hora em seus lençóis de design moderno e balbuciando tal qual as almas estropiadas, de quem eles mesmos cortaram a assistência e verba do orçamento federal – bem, nessas horas, rico ou pobre, o pus das feridas começa a ficar parecido. A igualdade é atingida – uma nação, incapacitada, justiça para todos.
     E agora, graças ao azar de Ronald Reagan, teremos um pouquinho da pesquisa de células-tronco bancada pelo governo – que talvez encontre a cura para o mal de Alzheimer e sabe-se lá o que mais. Pensem só nisso. É preciso que algo desse tipo aconteça para que ocorra um mínimo de investimento na pesquisa científica. Nosso amado ex-presidente, que ajudou a arruinar a vida de milhões de mulheres porque acreditava que embriões eram criancinhas, agora se encontra num apuro físico – e só porque hordas de conservadores consideram-no um santo, o sofrimento de milhões de norte-americanos comuns será aliviado?
     Este fenômeno – a mudança de opinião dos abonados assim que tornam-se vítimas – está acontecendo em todo lugar. Em Nova York, o prefeito republicano Rudolph Giuliani, que por anos se opôs a que a cidade custeasse a assistência médica de crianças carentes, sofreu uma virada radical – depois que descobriu ter câncer. “Devo admitir”, um humilde Giuliani explicou à imprensa, “que ter câncer me fez ver muitas coisas sob uma nova luz”.
     Ou veja o caso de Big Dick Cheney. Cheney tranquilamente breca qualquer iniciativa contra os gays que possa vir da Casa Branca. Por quê? Porque sua filha é lésbica. Qual seria a posição de Dick Cheney com relação a esse assunto se ninguém próximo a ele fosse gay? Provavelmente não muito longe da estrada no Wyoming em que Matthew Shepard [rapaz de 21 anos, assassinado em um crime antigay cometido em 1998, no Estado de Wyoming; tornou-se mártir da comunidade gay (n.t.)] foi amarrado e surrado numa cruz de ripas de cerca. Essas bichas e sapatas adquirem toda uma nova dimensão no momento em que são carne de nossa carne. O dia em que sua filha saiu do armário serviu ao menos para que Dick Cheney parasse de agir como um todo-poderoso republicano, para agir como ser humano e pai. Depois que a coisa chega em casa, é bem difícil continuar comportando-se como um imbecil.
     Então decidi que a única esperança que temos neste país de trazer socorro aos doentes, proteção às vítimas de discriminação e uma vida melhor para quem sofre é rezar sem parar para que aqueles que estão no poder sofram com as mais horrendas doenças, tragédias e circunstâncias. Porque garanto, quando é um deles que fica na reta, trilhamos todos o caminho da salvação.
     Com isso em mente, escrevi uma oração para apressar a recuperação de todos os necessitados, pedindo a Deus para castigar todo líder político e executivo de grande corporação com alguma forma de doença fatal. Sei que não é bonito pedir a Deus para prejudicar os outros, mas gostaria de pensar que Deus não é só misericordioso e justo, como também é dono de uma ironia muito apurada. Acho que Deus gostaria de ver um pouco de pesar atingir aqueles que tanto têm abusado de seu planeta e de suas crianças.
     Então escrevi “Uma oração para atingir os bem-de-vida com o máximo possível de aflições”. Afinal, a história conta que Deus curte um castigozinho à moda antiga de vez em quando – e quem melhor para punir do que os brancos boçais que nos deixaram nessa zona?
     Por favor, reze essa oração comigo a cada manhã, de preferência antes da abertura da Bolsa de Nova York. Não importa qual seja sua religião ou se você tem alguma. Esta reza é não-discriminatória, portátil e não tem pré-requisitos.
     Metade da África em breve morrerá por causa da Aids. Doze milhões de crianças nos Estados Unidos não têm acesso à alimentação de que necessitam. O Texas ainda executa cidadãos inocentes. Estamos perdendo tempo. Abaixem suas cabeças e juntem-se a mim agora...

Uma oração para atingir os bem-de-vida com o máximo possível de aflições

     Amado Senhor (Deus/Jeová/Buda/Bob/Ninguém):
     Nós Vos rogamos, ó misericordioso, para trazer conforto àqueles que sofrem hoje por quaisquer razões que Vós, a Natureza ou o Banco Mundial tenham considerado convenientes. Compreendemos, ó Pai celestial, que Vós não podeis curar todos os enfermos imediatamente – isto certamente esvaziaria os hospitais criados pelas boas freiras em Vosso nome. E aceitamos que Vós, o Onisciente, não podeis eliminar todo o mal do mundo, pois isto certamente Vos deixaria sem trabalho.
     Particularmente, amado Senhor, pedimos a Vós que atinjais todo membro da Câmara dos Deputados com horríveis e incuráveis cânceres no cérebro, no pênis e na mão (não necessariamente nesta ordem). Vos pedimos, Amado Pai, que todo senador sulista veja-se na situação do dependente de drogas e encontre-se assim ele mesmo condenado à prisão perpétua. Vos rogamos para que cada filho ou filha de cada senador da Montain Time Zone [área de fuso horário que abrange a região das Montanhas Rochosas (n.t.)] torne-se gay de verdade; para que cada filho e cada filha dos senadores do leste do país seja condenado à cadeira de rodas e para que os filhos dos senadores do oeste sejam obrigados a estudar na escola pública. Vos imploramos, Pai de misericórdia, que, da mesma forma como Vós transformastes a esposa de Lot em uma estátua de sal, transformai os ricos – todos os ricos – em miseráveis e sem-teto, arrancando-lhes todos os seus rendimentos, posses e economias. Removei todo o poder de suas posições, e, sim, fazei com que eles percorram o vale da escuridão da Previdência Social. Condenai-os a uma existência de fritar hambúrgueres e fugir dos cobradores. Deixai-os ouvir os gemidos dos inocentes sentados no meio do corredor 43 e deixai-os sentir o ranger de dentes podres e cariados, tal como os 108 milhões de cidadãos que não possuem plano odontológico.
     Pai Celestial, oramos para que todo líder branco (em especial os alunos da Bob Jones University [Universidade fundamentalista cristã fundada pelo líder religioso Bob Jones, conhecida por manter uma política de discriminação racial com base em princípios religiosos (n.t.)] que acredita que os negros estão numa boa nos dias de hoje seja acordado de seus sonhos amanhã de manhã com a pele preta como uma limusine, para que aprecie as riquezas e colha os frutos de ser negro nos Estados Unidos. Humildemente vos pedimos para que Vossos ungidos, os bispos da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, sejam castigados com ovários e gestações não-planejadas, juntamente com um panfleto sobre o método da tabelinha.
     Por fim, Amado Senhor, vos pedimos para que obrigueis Jack Welch [executivo famoso por suas estratégias de liderança (n.t.)] a andar no rio Hudson que ele poluiu, para que forceis os executivos de Hollywood a sentarem e assistirem a seus próprios filmes ininterruptamente, para que façais com que Jesse Helms [senador ultraconservador, formulou projetos de lei contra gays (n.t.)] seja beijado na boca por um homem e para que torneis Chris Matthews [jornalista acusado de receber propina da Enron (n.t.)] mudo, para que o ar – rapidamente – seja extraído dos pulmões de Bill O'Reilly [jornalista conservador, apresentador do programa “The O'Reilly Factor”, da emissora Fox News (n.t.)] e para que transformeis em cinzas todos os responsáveis pelos que fumam em meu escritório. Ah, sim, e para que jogueis com fúria uma praga de gafanhotos que se abrigue na peruca do Líder da Minoria no Senado [Trent Lott, líder do Partido Republicano no Senado, muito parodiado por usar uma vistosa peruca (n.t.)] do grande Estado do Mississipi.
     Que Vós possais ouvir nossas preces e atendê-las, ó Rei dos Reis, que senta no alto e nos assiste da melhor forma que conseguis, considerando quão ferrados somos. Concedei-nos alívio de nossa miséria e sofrimento, pois sabemos que os homens a quem Vós ireis ferir serão rápidos em seus esforços para livrar-se de sua desgraça, o que por sua vez poderá livrar-nos da nossa.
     Rezemos, assim, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Discurso proferido por Russell Means em julho de 1980.

Em um dia qualquer, encontrei este texto navegando pela Internet. Li e este texto respondeu inúmeras questões que habitavam minha mente... não encontrei este texto em português e minha mente inquietante me levou a traduzi-lo. Não sou um tradutor profissional, portanto, no final, existe um link para o original em inglês. Qualquer correção será muito bem recebida! Leiam, vivenciem... acho que não sou o único que se inquieta com estas questões.


A Revolução e os Índios Americanos: “O Marxismo é tão estranho para minha cultura quanto o Capitalismo”

O discurso a seguir foi proferido por Russell Means em julho de 1980, antes do encontro de milhares de pessoas do mundo todo que se reuniram para o Black Hills International Survival Gathering (Encontro Internacional para a preservação das Colinas Negras), em Black Hills na South Dakota (Colinas Negras em Dakota do Sul). Este é o discurso mais famoso de Russell Means.
Membro da tribo Oglala Lakota, ele talvez tenha sido a personalidade mais destacada no Movimento Indígena Americano, começando com a ocupação do Wounded Knee em 1973. Ele também teve uma carreira artística atuando como Chingachgook no filme Last of the Mohicans (O Último dos Moicanos). Ele morreu em 22 de outubro de 2012 aos 72 anos de idade.

"A única forma possível de iniciar uma declaração deste gênero é dizendo que eu detesto escrever. O processo em si mesmo sintetiza o conceito Europeu de pensamento “legitimado”; o quê está escrito adquire uma importância que é negada ao que é dito. Minha cultura, a cultura Lakota, possui uma tradição oral, portanto, em princípio, eu renego a escrita. Esta é uma das maneiras que o mundo do homem branco tem para destruir as culturas dos povos não-Europeus, a imposição de uma abstração sobre a relação oral do povo.
Portanto, o que você lê aqui não é o que eu escrevi. Isto é o que eu disse e alguém escreveu minhas palavras ditas. Eu permitirei que seja assim porque me parece que a única maneira de se comunicar com o mundo branco é através das folhas secas e mortas de um livro. Eu realmente não me importo se minhas palavras alcançarão os brancos ou não. Eles já demonstraram através de sua história que não conseguem ouvir, não conseguem ver; os brancos conseguem apenas ler (é claro que existem exceções, mas as exceções apenas confirmam a regra). Eu estou mais preocupado com o povo indígena americano, estudantes e outras pessoas, que começam a ser absorvidos pelo mundo branco através de universidades e outras instituições. Mas mesmo assim isto é apenas uma preocupação periférica. É extremamente possível que uma mente branca se desenvolva no interior de uma cara vermelha; e se isto for uma escolha pessoal, então, que assim seja, mas eu não vejo nenhuma utilidade para ela. Isto é parte do processo de genocídio cultural sendo impetrado atualmente pelos Europeus contra o povo Indígena Americano. Minha preocupação é com os Indígenas Americanos que tem escolhido resistir a este genocídio, mas que devem estar confusos sobre como agir.
Vocês notaram que eu uso o termo Índio Americano e não Nativo Americano ou Povo Indígena Nativo ou Ameríndios, quando estou me referindo a meu povo. Tem havido alguma controvérsia em relação a tais termos, e sinceramente, neste ponto, eu acho isto um absurdo. Primeiramente parece que Índio Americano é um termo que tem sido rejeitado como de origem Europeia – o que é verdade. Mas todos os termos acima são de origem Europeia; a única maneira não-Europeia é falar dos Lakota – ou, mais precisamente, dos Oglala, Brule, etc. – e dos Dineh, dos Miccousukee, e todos os demais centenas de nomes corretos de cada tribo.
Existe também alguma confusão sobre a palavra Índio, uma crença errônea de que se refere a alguém do país Índia. Quando Colombo se lavou nas praias do Caribe, ele não estava procurando por um país chamado Índia. Os Europeus chamavam aquele país de Industão (Hindustan) em 1492. Procure nos mapas antigos. Colombo chamou os povos tribais que ele encontrou de "Indio" do italiano in dio, que significa "em Deus”.
É necessário um grande esforço por parte de cada Índio Americano para não se tornar Europeizado. E a força para este esforço só pode vir dos caminhos da tradição, os valores tradicionais que os mais velhos conservam. Deve vir da aliança, das quatro direções, das relações: não deve vir das páginas de um livro ou de milhares de livros. Nenhum Europeu será capaz de ensinar um Lakota a ser Lakota, um Hopi a ser Hopi. Um doutor em "Estudos Indígenas" ou em "educação" ou em outra matéria qualquer não é capaz de transformar uma pessoa em um ser humano ou fornecer conhecimento dentro das formas tradicionais. Ele é apenas capaz de formar em você uma mente Europeia, um estrangeiro.
Eu preciso ser claro sobre uma questão aqui, pois me parece que existe alguma confusão sobre isto. Quando eu falo de Europeus ou de mentalidade Europeia, eu não quero que existam falsas distinções. Eu não estou dizendo que de um lado existe os subprodutos de alguns milhares de anos de genocídio, desenvolvimento intelectual Europeu reacionário, que seja ruim; e de outro lado existe um desenvolvimento intelectual revolucionário que seja bom. Eu estou me referindo aqui à tal chamada teoria do Marxismo e anarquismo e “esquerdismo” em geral. Eu não acredito que estas teorias possam ser separadas do restante da tradição intelectual Europeia. Esta é a mesma velha ladainha.
O processo começou muito antes. Newton, por exemplo, "revolucionou" a física e as chamadas ciências naturais reduzindo o universo físico em uma equação matemática linear. Descartes fez a mesma coisa com a cultura. John Locke com a política, e Adam Smith com a economia. Cada um destes "pensadores" pegaram um pedaço da espiritualidade da existência humana e a converteu em um código, uma abstração. Eles continuaram onde o Cristianismo parou: eles "secularizaram" a religião Cristã, como os "acadêmicos" gostam de dizer – e desta forma eles conseguiram tornar a Europa mais capaz e pronta para agir como uma cultura expansionista. Cada uma das revoluções intelectuais serviram para abstrair a cultura Europeia ainda mais, a remover a maravilhosa complexidade e espiritualidade do universo e substituí-la por uma sequência lógica: um, dois, três. Responda!
E isto é a chamada "eficiência" na mente Europeia. Qualquer coisa que seja mecânica é perfeita; qualquer coisa que pareça funcionar no momento – isto é, prova que o modelo mecânico está correto – é considerada certa, mesmo quando seja claramente falsa. Este é o motivo pelo qual a "verdade" muda tão rapidamente na mentalidade Europeia; as respostas que resultam de tal processo são apenas tapa-buracos, apenas temporários, e devem ser continuamente descartados em função de novos tapa-buracos que garantam os modelos mecânicos e os mantenham (os modelos) vivos.
Hegel e Marx são herdeiros do pensamento de Newton, Descartes, Locke e Smith. Hegel finalizou o processo de secularização da teologia – e isto é posto em seus próprios termos – ele secularizou o pensamento religioso com o que a Europa entende como o universo. E então Marx adaptou a filosofia de Hegel aos termos de "materialismo" que é o mesmo que dizer que Marx e Hegel trabalharam junto neste processo de desespiritualização. Novamente, nas palavras do próprio Marx. E agora isto é visto como o potencial futuro revolucionário da Europa. Europeus podem ver isto como revolucionário, mas os Índios Americanos veem isto simplesmente como ainda mais do mesmo conflito Europeu entre o ser e o obter. As raízes da nova forma Marxista do imperialismo Europeu baseados em Marx – e seus seguidores – está ligado à tradição de Newton, Hegel e outros.
O Ser é uma proposição espiritual. Obter é um ato material. Tradicionalmente, Índios Americanos sempre tentaram ser o melhor povo que podiam. Parte deste processo espiritual era e é abandonar a riqueza, descartar a riqueza afim de não obter. O ganho material é um indicador de um status falso entre povos tradicionais, enquanto é a "prova de que o sistema funciona" para Europeus. Claramente, existem dois pontos de vista completamente opostos em questão aqui, e o Marxismo está bem distante ao da visão do Índio Americano. Mas vamos olhar para uma implicação maior disto; este não é um debate meramente intelectual.
A tradição Europeia materialista de desespiritualização do universo é muito semelhante ao processo mental que passa pela desumanização do outro. E quem parece ser o mais hábil em desumanizar outra pessoa? E por que? Soldados tem um longo aprendizado sobre combate ao inimigo antes de entrar em combate. Assassinos fazem o mesmo antes de saírem para cometer o assassinato. Soldados nazistas da SS agiram assim com os prisioneiros dos campos de concentração. Policiais fazem isto. Líderes de corporações agem assim com trabalhadores quando os envia para minas de urânio e siderúrgicas. Políticos agem assim com todo mundo. E a parte do processo que é comum para cada grupo que desumaniza o outro é que está tubo bem matar ou destruir outra pessoa. Um dos mandamentos Cristãos diz, "Não matarás", pelo menos não matarás seres humanos, portanto o truque é converter mentalmente as vítimas em seres não humanos. Assim você pode declarar a violação de seu próprio mandamento como uma virtude.
Nos termos da desespiritualização do universo, o processo mental funciona de maneira que torna uma virtude destruir o planeta. Termos omo progresso e desenvolvimento são usados para encobrir palavras aqui, as maneiras como vitória e liberdade são usadas para justificar a carnificina no processo de desumanização. Por exemplo, um especulador imobiliário se refere como "desenvolvimento" um pedaço de terra arrasado para abrir uma pedreira de cascalho; desenvolvimento neste caso significa uma destruição total e permanente, quando a própria terra é removida. Mas a lógica Europeia é de obter umas poucas toneladas de cascalho com a qual mais terras podem ser “desenvolvidas” com a construção de estradas de rodagem. Em última análise, o universo inteiro está pronto – na visão Europeia – para este tipo de insanidade.
O mais importante aqui, talvez, é que os Europeus não sentem nenhum senso de perda nisto tudo. Afinal, seus filósofos desespiritualizaram a realidade, portanto não há nenhuma satisfação (para eles) a ser obtida em simplesmente observar a maravilha de uma montanha ou lago ou de um ser humano. Não, a satisfação é medida em termos de ganho material. Portanto a montanha se transforma em cascalho, o lago serve para refrigerar uma fábrica, e as pessoas são adaptadas para este processo através das moendas de doutrinação que os Europeus gostam de chamar de escolas.
Mas cada nova peça deste “progresso” aposta em algo fora do mundo real. Retirar combustível para uma máquina mecânica é um exemplo. A pouco mais de dois séculos atrás, quase todo mundo usava carvão – um item natural, renovável – como combustível para as necessidades humanas de aquecimento e alimentação. Junto veio a Revolução Industrial e o carvão se tornou um combustível, assim como a produção se tornou um imperativo social para a Europa. A poluição começou a se tornar um problema nas cidades, e a terra foi dilacerada a fim de fornecer carvão visto que a madeira sempre havia sido obtida ou colhida sem grandes prejuízos para o ambiente. Mais tarde, o petróleo se tornou o combustível mais importante, assim que a tecnologia de produção se aperfeiçoou através de uma série de “revoluções” científicas. A poluição aumentou dramaticamente, e ninguém ainda sabe os custos ambientais reais que o bombeamento de todo este petróleo do interior da terra poderá causar ao longo do tempo. Agora existe uma “crise de energia" e o urânio está se tornando o combustível dominante.
Capitalistas, pelo menos, desenvolverão o uso do urânio como combustível apenas se isto lhes proporcionar um bom lucro. Esta é sua ética, e talvez isto nos garanta ainda algum tempo. Marxistas, por outro lado, podem desenvolver o uso do urânio como combustível o mais rápido possível pois este é o combustível mais “eficiente” disponível. Esta é sua ética, e eu não consigo ver qual é preferível. Como eu disse, o Marxismo está muito bem inserido no meio da tradição Europeia. É a mesma ladainha.
Existe uma regra de ouro que pode ser aplicada aqui. Você não é capaz de julgar a natureza real de uma doutrina revolucionária Europeia com base nas mudanças que ela propõe fazer de dentro do poder da estrutura e sociedade Europeia. Você apenas a pode julgar pelos efeitos que isto acarretará nos povos não-Europeus. Digo isto porque toda revolução na história Europeia apenas serviu para reforçar as tendências e habilidades da Europa em exportar destruição para outros povos, outras culturas e para o próprio meio ambiente. Eu desafio qualquer um a apresentar um exemplo em que isto não seja verdade.
Então nós agora, como povo Indígena Americano, somos convidados a acreditar que um “nova” doutrina revolucionária Europeia como o Marxismo era reverter os efeitos negativos que a história Europeia teve sobre nós. As relações de poder Europeu serão ajustados mais uma vez, e supõem-se isto fará as coisas ficarem melhores para todos nós. Mas o que isto realmente significa?
Exatamente agora, hoje, nós que vivemos na Reserva Pine Ridge estamos vivendo no que a sociedade branca designou como “Área de Sacrifício Nacional”. Isto significa que nós temos muita reserva de urânio aqui, e a cultura branca (não nós) precisamos deste urânio como material de produção de energia. O mais barato, mais eficiente jeito para a indústria extrair e processar este urânio é despejar os resíduos da produção exatamente aqui nos sítios de escavação. Exatamente aqui onde nós vivemos. Este resíduo é radioativo e tornará a região toda inabitável para sempre. Isto é considerado pela indústria, e pela sociedade branca que criou esta indústria, como sendo um preço “aceitável” a pagar pelo desenvolvimento destes recursos de energia. Ao longo do caminho eles também planejam drenar o lençol de água que está debaixo desta área da Dakota do Sul como parte do processo industrial, assim a região se tornará duplamente inabitável. O mesmo tipo de situação está ocorrendo logo abaixo nas terras Navajo e Hopi, logo acima nas terras dos Cheyenne do Norte e Crow, e outros lugares. Trinta por cento do carvão do Oeste e metade dos depósitos de urânio nos Estados Unidos estão em reservas indígenas, portanto de forma alguma isto pode ser chamado de uma questão menor.
Nós estamos resistindo a sermos transformados em uma Área de Sacrifício Nacional. Nós estamos resistindo a sermos transformados em um povo de sacrifício nacional. Os custos deste processo industrial não são aceitáveis para nós. É um genocídio escavar urânio aqui e drenar o lençol de água – não mais, não menos.
Agora suponhamos que em nossa resistência contra o extermínio comece a agregar aliados (nós temos). Vamos supor ainda que nós fôssemos tomar o Marxismo revolucionário como se diz: que pretende nada menos do que a derrubar completamente a ordem capitalista Europeia que tem apresentado esta ameaça sobre nossa existência. Esta parece ser uma aliança natural para o povo Indígena Americano estabelecer. Afinal, como dizem os Marxistas, são os capitalistas que nos definem como sacrifício nacional. Isto é verdade até aqui.
Mas, como eu tenho tentado apontar, esta “verdade” é muito traiçoeira. O Marxismo Revolucionário está comprometido ainda mais com a perpetuação e perfeição do verdadeiro processo industrial que está destruindo todos nós. Ele oferece apenas a “redistribuição” dos resultados – o dinheiro, talvez – desta industrialização para uma parcela maior da população. Ele oferece retirar a riqueza dos capitalistas e repassá-la adiante; mas a fim de fazer o quê, o Marxismo deverá manter o sistema industrial. Mais uma vez, o poder das relações dentro da sociedade Europeia será alterado, porém mais uma vez os efeitos sobre os povos Indígenas Americanos aqui e os não-Europeus em qualquer lugar continuarão a ser os mesmos. É a mesma coisa quando o poder foi redistribuído da igreja para os negócios privados durante a chamada revolução burguesa. A sociedade Europeia mudou um pouco, pelo menos superficialmente, mas seu domínio sobre os não-Europeus continuou como antes. Você pode ver o que a Revolução Americana de 1776 causou aos Índios Americanos. É a mesma velha ladainha. Ladainha.
O Marxismo Revolucionário, como outras formas na sociedade industrial, almeja "racionalizar" todos os povos em direção à indústria – indústria máxima, máxima produção. Esta é uma doutrina que despreza a tradição espiritual dos Índios Americanos, nossas culturas, nossos jeitos de viver. O próprio Marx nós chamou de “pré-capitalistas” e “primitivos”. Pré-capitalista significa simplesmente que, em sua visão, nós eventualmente iríamos descobrir o capitalismo e nos tornar capitalistas; nós temos sempre sido economicamente atrasados nos termos Marxistas. A única maneira pela qual o povo Indígena Americano poderia participar na revolução Marxista seria unindo-se ao sistema industrial, tornarem-se trabalhadores de fábricas, ou “proletários”, como Marx os chamou. O homem estava bem certo sobre o fato de que sua revolução apenas poderia ocorrer através da luta do proletariado, que a existência de um sistema industrial de massa é a pré-condição para uma sociedade Marxista de sucesso.
Eu penso que existe um problema com a linguagem aqui. Cristãos, capitalistas, marxistas. Todos eles foram revolucionários em suas próprias mentes, mas nenhum deles realmente promoveu uma revolução. O quê eles realmente queriam era continuação. Eles fazem o que eles fazem a fim de que a cultura Europeia continua e se desenvolva de acordo com suas necessidades.
Então, para que todos nós realmente unamos nossas forças com o Marxismo, nós Índios Americanos devemos aceitas o sacrifício nacional de nossa terra natal; nós devemos cometer suicídio cultural e nos tornarmos industrializados e Europeizados.
Neste ponto, eu tenho que parar e perguntar a mim mesmo se eu não estou sendo muito duro. O Marxismo tem uma boa história. Esta história bear out minhas observações? Eu olho para o processo de industrialização na União Soviética desde 1920 e eu vejo que aqueles Marxistas fizeram o que levou 300 anos para a Revolução Industrial Inglesa realizar; e o Marxismo realizou em 60 anos. Eu vejo que o território da USSR possuia um número de povos tribais e que eles foram esmagados para dar caminho para as fábricas. Os Soviéticos se referem a isto como “A Questão Nacional”, a questão se os povos tribais tem o direito de existir como povo; e eles decidiram que os povos tribais eram um sacrifício aceitável para as necessidades industriais. Eu olho para e China e vejo a mesma situação. Eu olho para o Vietnam e vejo Marxistas impondo uma ordem industrial e acabando com as raízes dos povos indígenas tribais montanheses.
I ouço influentes cientistas Soviéticos dizendo que quando o urânio estiver exaurido, outras alternativas serão encontradas. Eu vejo Vietnamitas invadindo plantas de energia nuclear abandonadas pelo exército dos Estados Unidos. Eles a desmontaram e destruíram? Não, eles as estão usando. Eu vejo a China explodindo bombas nucleares, desenvolvendo reatores nucleares, e preparando um programa espacial a fim de colonizar e explorar planetas da mesma maneira que os Europeus colonizaram e exploraram este hemisfério. É a mesma velha ladainha, mas talvez com maior velocidade desta vez.
Os argumentos dos cientistas Soviéticos é muito interessante. Eles sabem qual será esta fonte de energia alternativa? Não, eles simplesmente tem fé. A ciência encontrará um caminho. Eu ouço Marxistas revolucionários dizendo que a destruição do ambiente, poluição e radiação serão todos controlados. E eu os vejo agindo de acordo com suas palavras. Eles sabem como estas condições serão controladas? Não, eles simplesmente tem fé. A ciência encontrará um caminho. A industrialização é boa e necessária. Como eles sabem disto? Fé. A ciência encontrará um caminho. Fé deste tipo sempre foi conhecida na Europa como religião. A ciência se tornou a nova religião Europeia para capitalistas e Marxistas; eles são verdadeiramente inseparáveis; eles são parte e parcela da mesma cultura. Portanto, em ambas teorias e práticas, o Marxismo exige que povos não-Europeus desistam de seus valores de suas tradições, de sua existência cultural completamente. Nós todos nos tornaremos viciados em ciência industrializada em uma sociedade Marxista.
Eu não acredito que o capitalismo em si seja realmente responsável pela situação na qual os Índios Americanos tem sido declarado um sacrifício nacional. Não, esta é a tradição Europeia; a cultura Europeia em si é responsável. O Marxismo é apenas a continuação mais recente desta tradição, não é uma solução para isto. Aliar-se ao Marxismo e se aliar com as mesmas forças que nos declararam um custo aceitável.
Existe outro caminho. Existe o caminho tradicional dos Lakota e os caminhos dos povos Indígenas Americanos. Este é o caminho que sabe que os humanos não tem o direito de degradar a Mãe Terra, que existem forças além de qualquer coisa que a mente Europeia tenha concebido, que os humanos devem estar em harmonia com todas as relações ou as relações irão eventualmente eliminar a desarmonia. A ênfase torta nos humanos pelos humanos – a arrogância Europeia de agir como se eles estivessem além da natureza de tudo como coisas relacionadas – pode apenas resultar na total desarmonia e um reajuste que reduzirá o número de humanos arrogantes, dando-lhes o gosto desta realidade além de sua compreensão ou controle e restaure a harmonia. Não é necessário uma teoria revolucionária para que isto aconteça; isto está além do controle humano. Os povos naturais deste planeta sabem disto e portanto eles não teorizam sobre isto. Teoria é uma abstração; nosso conhecimento é real.
Distilada em seus termos básicos, a fé Europeia – incluindo a nova fé na ciência – é equivalente à crença de que o homem é Deus. A Europa sempre procurou um Messias, seja este o homem Jesus Cristo ou o homem Karl Marx ou o homem Albert Einstein. Índios Americanos sabem que isto é totalmente absurdo. Os humanos são as criaturas mais frágeis de todas, tão fracas que outras criaturas estão dispostas a desistir de sua própria vida para que nós possamos viver. Os Humanos são capazes de sobreviver apenas através do exercício da racionalidade pois eles não possuem as habilidades de outras criaturas para obter comida através do uso de garras e presas.
Mas a racionalidade é uma maldição se ela pode fazer com que os humanos esqueçam da ordem natural das coisas que outras criaturas não esquecem. Um lobo nunca se esquece de seu lugar na ordem natural. Índios Americanos podem se esquecer. Europeus quase sempre se esquecem. Nós oramos em agradecimento ao cervo, por nossas relações, por nos permitir comer sua carne; Europeus simplesmente comem a carne como se fosse seu direito e consideram o cervo um ser inferior. Afinal, Europeus se consideram à semelhança de deus em seu racionalismo e ciência. Deus é o Ser Supremo; tudo mais deve ser inferior.
Toda a tradição Europeia, incluindo o Marxismo, tem conspirado para desafiar a ordem natural das coisas. A Mãe Terra tem sido abusada, poderes tem sido abusados, e isto não continuará para sempre. Nenhuma teoria é capaz de alterar este simples fato. A Mãe Terra vai retaliar, o meio ambiente todo vai retaliar, e os abusadores serão eliminados. Todas as coisas compõe um círculo perfeito, que volta ao ponto onde começou. Isto é revolução. E esta é uma profecia do meu povo, do povo Hopi e de outros povos.
Os Índios Americanos tem tentato explicar isto para os Europeus por séculos. Mas, como eu disse no antes, os Europeus tem provado que são incapazes de ouvir. A ordem natural vencerá, e os infratores vão morrer, assim como o cervo morre quando ele fere a harmonia ao procriar demais em uma certa região. É apenas uma questão de tempo até que a chamada "catástrofe de proporções globais" pelos Europeus aconteça. Este é o papel dos povos Indígenas Americanos, o papel de todas os seres naturais, sobreviver. Uma parte de nossa sobrevivência é resistir. Nós resistimos não para derrubar um governo ou para tomar o poder político, mas porque é algo natural resistir à exterminação, sobreviver. Nós não queremos ter poder sobre as instituições dos brancos; nós queremos que as instituições dos brancos desapareçam. Isto é revolução.
Os Índios Americanos ainda estão em contato com essas realidades – as profecias, as tradições de nossos ancestrais. Nós aprendemos de nossos anciãos, da natureza, dos poderes. E quando a catástrofe terminar, os Índios Americanos ainda estarão aqui para habitar o hemisfério. Eu não me importo que seja apenas um punhado de pessoas vivendo no alto dos Andes. Os povos Indígenas Americanosvão sobreviver; a harmonia será reestabelecida. Isso é revolução.
Neste ponto, talvez, Eu precise ser mais claro sobre outra questão, que já deveria estar claro a partir do que eu já disse. Mas a confusão nasce facilmente nos dias atuais, portanto eu quero reforçar este ponto. Quando eu uso o termo Europeu, Eu não estou me referindo à cor da pela ou a uma estrutura genética em particular. Eu estou me referindo a uma estrutura de pensamento, a uma visão de mundo que é um produto do desenvolvimento da cultura Europeia. Os povos não são geneticamente codificados para sustentar esta perspectiva; eles são aculturados para sustentá-la. O mesmo é verdadeiro para os Índios Americanos ou para os membros de qualquer cultura.
É possível para um Índio Americano compartilhar valores Europeus, uma visão de mundo Europeia. Nós temos um termo para estas pessoas; nós os chamamos de “maçãs” - vermelhos por fora (genética) e brancos por dentro (seus valores). Outros grupos tem termos semelhantes: os Negros tem seus "oreos"; Hispânicos tem "Coconuts" e assim por diante. E, como eu disse antes, existem excessões para o padrão branco: pessoas que são brancas por fora, mas não são brancas por dentro. Eu não estou certo sobre que termo eu deveria usar em relação a eles a não ser "seres humanos".
O que eu estou expondo aqui não é uma proposição racial, mas uma proposição cultural. Aqueles que recentemente tem advogado a favor e defendido as realidades da cultura Europeia e seu industrialismo são meus inimigos. Aqueles que resistem a isto, que lutam contra isto, são meus aliados, os aliados do povo Indígena Americano. E eu não dou a mínima para qual seja a cor de sua pele. Caucasiano é a palavra branca para a raça branca: Europeus é a perspectiva à qual eu me oponho.
Os Vietnamitas Comunistas não são exatamente o que se considera um Caucasiano geneticamente falando, mas agora eles estão funcionando como Europeus mentais. O mesmo é verdade para os Chineses Comunistas, para os Japoneses capitalistas ou para os Católicos Bantu ou Peter "MacDollar" abaixo na Reserva Navajo ou Dickie Wilson acima na Pine Ridge. Não existe nenhum racismo envolvido nisto, apenas um reconhecimento da mente e espírito que compõe uma cultura.
Em termos Marxistas eu suponho que eu seja um "nacionalista cultural". Eu trabalho primeiramente com meu povo, o povo tradicional Lakota, porque nós comungamos de uma visão de mundo em comum e compartilhamos de uma luta direta. Além disto, Eu trabalho com outros povos Indígenas Americanos tradicionais, novamente devido a uma certa comunhão na visão de mundo e na forma de luta. E além disto, eu trabalho com qualquer um que tenha vivido a opressão colonial da Europa e que resista a seu absolutismo cultural e industrial. Evidentemente, isto inclui Caucasianos geneticamente falando que lutam para resistir ao padrão dominante da cultura Europeia. Os Irlandeses e os Bascos me vem imediatamente à mente, mas existem muitos outros.
Eu trabalho primeiramente com meu próprio povo, com minha própria comunidade. Outros povos que sustentam perspectivas não-Europeias deveriam fazer o mesmo. Eu acredito no ditado, "Acredita na visão de seu irmão", embora eu gosto de acrescentar irmãs também na questão. Eu confio na comunidade e na visão culturalmente baseada de todas as raças que resistem naturalmente à industrialização e à extinção do humano. É claro que indivíduos brancos podem compartilhar disto, dado apenas que eles tenham alcançado a consciência de que a continuidade dos imperativos industriais Europeus não são um ponto de vista, mas o suicídio da espécie. O Branco é uma das cores sagradas para o povo Lakota – vermelho, amarelo, branco e preto. As quatro direções. As quatro estações. Os quatro períodos de vida e emadurecimento. As quatro raças da humanidade. Misturando o vermelho, o amarelo, o branco e o preto nós temos o marrom, a cor da quinta raça. Esta é a ordem natural das coisas. E me parece natural portanto que todas as raças, cada qual com seu princípio, identidade e mensagem especiais.
Mas existe um comportamento peculiar entre a maioria dos Caucasianos. Assim que eu me tornei um crítico da Europe e de seu impacto sobre outras culturas, eles se tornaram defensivos. Eles começaram a se defender. Mas eu não os estou atacando pessoalmente; Eu estou atacando a Europa. Ao personalizar minhas observações sobre a Europa eles estão personalizando a cultura Europeia, identificando a si mesmos com ela. Ao se defenderam neste contexto, eles estão em última instância defendendo a cultura da morte. Existe uma confusão que dever ser superada, e deve ser superada rapidamente. Nenhum de nós tem energia para desperdiçar em lutas falsas.
Os Caucasianos tem uma visão mais positiva para oferecer à humanidade do que a cultura Europeia. Eu acredito nisto. Mas para que os Caucasianos tenham esta visão é necessário que eles saiam da cultura Europeia – se alinhem ao resto da humanidade – para ver o que a Europa é e o que ela tem faz.
Agarrar-se ao capitalismo e ao Marxismo e todos os outros "ismos" é simplesmente permanecer dentro da cultura Europeia. Não tem como evitar este fato básico. Como um fato, isto determina uma escolha. Entender que a escolha está baseada na cultura, não na raça. Entender que escolher a cultura e a industrialização Europeia é escolher ser meu inimigo. E entender que esta escolha é sua, não minha.
Isto me leva de volta a me dirigir àqueles Índios Americanos que estão vagando por universidades, favelas nas cidades, e outras instituições Europeias. Se vocês estão aí para resistir ao opressor de acordo com seus costumes tradicionais, que assim seja. Eu não sei como você consegue combinar as duas coisas, mas talvez você consiga ter sucesso. Mas mantenha o seu senso de realidade. Esteja atento a vir a acreditar que o mundo branco agora oferece soluções para os problemas que nos atinge. Esteja atento, também, de não permitir que as palavras dos povos nativos sejam usados para vantagem de nossos inimigos. A Europa inventou a prática de aproveitar as palavras para si mesmos. Basta que vocês olhem para os tratados entre Índios Americanos e vários governos Europeus para saber que isto é verdade. Desenvolva sua força a partir do que você é.
Uma cultura que regularmente confunde revolta com resistência, não tem nada útil para te ensinar nem nada a te oferecer como forma de viver. Os Europeus tem já há um longo tempo perdido todo o contato com a realidade, se é que alguma vez eles estabeleceram algum contato com o que vocês são como Índios Americanos.
Portanto, para concluir este discurso, eu quero deixar bem claro que direcionar qualquer um ao Marxismo é a última coisa que passa pela minha mente. O Marxismo é tão alienígena à minha cultura quanto o capitalismo e o Cristianismo são. De fato, eu posso dizer que eu não penso que eu esteja tentando conduzir qualquer pessoa em direção a qualquer coisa. Até um certo ponto eu tentei ser um “líder", no sentido que a mídia branca gosta de usar este termo, Quando o Movimento Indígena Americano era uma organização nova. Este é o resultado de uma confusão que eu não tenho mais. Você não é capaz de ser tudo para todos. Eu não me proponho a ser usado desta forma por meus inimigos. Eu não sou um líder. Eu sou um membro da comunidade Oglala Lakota. Isto é tudo o que eu quero e tudo o que eu preciso ser. E eu estou completamente confortável com o que eu sou".

Texto original: http://theanarchistlibrary.org/library/russell-means-for-america-to-live-europe-must-die