Durante muitos anos desenvolvi a prática de leitura do I Ching com varetas, estudando textos de C. G. Jung. A partir desta prática e dos estudos, preparei uma oficina de "Leitura do I Ching com varetas".
Meto-me dentro de mim mesmo e acho aí um mundo! (Goethe in Os sofrimentos do jovem Werther)
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terça-feira, 2 de abril de 2019
sexta-feira, 7 de setembro de 2018
Independência ou dívida?
O
Brasil de fato conquistou a sua Independência pagando milhões de
libras esterlinas a Portugal numa negociação mediada pelo
Excelentíssimo Cavaleiro de Sua Majestade Britânica Sir Charles
Stuard, Grão Cruz da Ordem da Torre e Espada, em 1825.
O
Brasil comprou a sua Independência. O tratado que oficializou o ato,
chamado de reconhecimento, foi publicado em vários jornais
brasileiros, inclusive em Salvador. O Correio
da Bahia
publicou a íntegra do documento, em setembro de 1825; não fala em
valores e para isso usa do eufemismo “aceitando a mediação de sua
majestade britânica para o ajuste de toda a questão incidente à
separação dos dois estados”. A “questão incidente” era de 2
milhões de libras esterlinas, valor pago a título de indenização.
Pelo
tratado publicado no jornal baiano, em setembro de 1825, Portugal
reconhece o Brasil como país independente e “promete não aceitar
proposições de quaisquer colônias portuguesas para se reunirem ao
Império do Brasil”. O dinheiro foi tomado de empréstimo nos
bancos ingleses, mas não chegou na íntegra dos valores conveniados
aos cofres de Portugal. A operação bancária passou por Londres que
reteve 1,4 milhões de libras esterlinas, a título de pagamento da
dívida externa de Portugal para com os britânicos. Está explicado
o interesse dos britânicos em mediar o tratado.
Em 7
de setembro, D. Pedro proclamou a famosa frase: Independência
ou Morte.
Esse mote foi um impulso para a multiplicação de hinos,
representações e sentimento de amor à pátria. Porém, nesse
momento ainda não se tinha com precisão a data da independência.
Em junho havia tido a convocação da Assembleia
Constituinte
para o Reino do Brasil, em outubro se deu a aclamação
de D. Pedro I
no Rio de Janeiro e somente em dezembro é que ele foi oficialmente
coroado.
Assim, a firmação do 7
de setembro
como data oficial da Independência foi mais uma conveniência
simbólica
do processo todo.
sábado, 16 de junho de 2018
DA NECESSIDADE DE ESTUDAR HISTÓRIA
"... o estudo da história visa acima de tudo nos tornar cientes de possibilidades que talvez não levássemos em consideração. Historiadores estudam o passado não para poder repeti-lo, e sim para poder se libertar dele.
Cada um de nós e todos nós nascemos numa determinada realidade histórica, governada por normas e valores específicos e conduzida por um sistema econômico ímpar. Vemos essa realidade como fato consumado e a achamos natural, inevitável e imutável. Esquecemos que nosso mundo foi criado numa cadeia de eventos acidental e que a história configurou não apenas a tecnologia, a política e a sociedade, mas também nossos pensamentos, temores e sonhos. A mão fria do passado emerge na direção de um único futuro. Sentimos essa constrição desde o momento em que nascemos, e assim presumimos que ela é parte natural e inescapável do que somos. Portanto, raramente tentamos nos livrar dela para antever futuros alternativos.
O ESTUDO DA HISTÓRIA TEM O OBJETIVO DE NOS LIVRAR DESSA SUBMISSÃO AO PASSADO. ELE NOS PERMITE VOLTAR A CABEÇA PARA MAIS DE UMA DIREÇÃO E COMEÇAR A PERCEBER POSSIBILIDADES INIMAGINÁVEIS PARA NOSSOS ANTEPASSADOS. AO OBSERVAR A CADEIA ACIDENTAL DE EVENTOS QUE NOS TROUXE ATÉ AQUI, NOS DAMOS CONTA DE COMO NOSSOS PENSAMENTOS E SONHOS GANHARAM FORMA - E PODEMOS COMEÇAR A PENSAR E SONHAR DE MODO DIFERENTE. O ESTUDO DA HISTÓRIA NÃO DIRÁ QUAL DEVE SER NOSSA ESCOLHA, MAS AO MENOS NOS DARÁ MAIS OPÇÕES."
(HOMO DEUS, de Yuval Noah Harari, p 67)
domingo, 21 de agosto de 2016
O início de uma nova ditadura no Brasil (?)
Há algum tempo estou postando e comentando que está em curso um novo
golpe semelhante e duradouro ao que iniciou-se em 1964. É uma frase
simples e que provoca reflexão. Mas será verdadeira? Não estou
recorrendo à mesma estratégia da mídia manipuladora e dos
defensores acéfalos da elite medíocre e reacionária existente
em nosso país? Ou seja, não estou usando uma falácia poderosa para
convencer leitores menos aparelhados conceitualmente? Existe
realmente consistência crítica em minha afirmação?
Bem, como professor e estudioso de História, não posso me dar ao luxo de
garantir minha afirmação apenas baseado em minha pressuposta
experiência acadêmica e profissional. Portanto, me dispus a deixar
a preguiça de lado e comecei a ler a obra de Elio Gaspari sobre a
Ditadura Militar (seus quatro livros publicados até agora, A
Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada e a Ditadura Encurralada).
Comprei estes livros na época em que trabalhava na extinta Livraria Cultura
e tinha o privilégio de adquirir mais livros do que era capaz de ler
pois, sim, a leitura crítica exige esforço, o estudo sério exige
esforço intelectual. E vem daí a crítica aos comentaristas e
críticos sem consistência, sem formação e sem conteúdo. Repetir
frases feitas é fácil. Decorar versículos bíblicos e usá-los
como verdades absolutas é ainda mais fácil. Entender e compreender exige dedicação,
exige tempo, exige esforço.
Para minha satisfação, logo no primeiro volume, A
Ditadura Envergonhada – as ilusões armadas,
Elio Gaspari faz uma “Introdução” à sua extensa obra onde já se evidencia muito do que estou afirmando.
Não. Minha tarefa não se reduzirá à leitura de um único capítulo. Vou ler a obra toda. Se encontrar paradoxos ou
antagonismos, estou pronto a enfrentá-los, sem medo, sem preguiça.
Mas nesta pequena introdução (são apenas 20 páginas), Elio Gaspari destaca exatamente o aspecto de que comandar
uma ação não implica que o resultado esteja sob seu comando. Existir uma boa intenção ao se defender uma ideia não implica que
a realização desta ideia produza os efeitos esperados.
Assim, podemos aprender com um erro, ou repeti-lo até a morte. E o erro não
está apenas no grupo de pobres empregados que defendem a riqueza de
seus patrões. O erro está também em uma proposta de partido que se utiliza de concessões como
forma de barganha do poder para efetivar seus projetos. Junto a
forças maiores estão os interesses mesquinhos. No tabuleiro de
xadrez movimentam-se peões e rainhas, peças brancas e peças
pretas. E no tabuleiro da vida a diversidade das peças é tão
imensa quanto o número de pessoas que dela participam.
A diferença está basicamente na instituição utilizada para efetivar
o golpe nas diferentes épocas. Se em 1964 foi utilizado o poder
militar para garantir o golpe, nos dias atuais está sendo utilizado
o poder jurídico.
Enfim, não posso reproduzir aqui todas as vinte páginas da introdução da
obra, mas recortei alguns trechos que destacam a minha ideia. Se
alguém dispuser de tempo e disposição, poderá ler o capítulo
todo, até mesmo a obra toda, porque não?
(21) INTRODUÇÃO
...
(22) - Frota, nós não estamos mais nos entendendo. A sua administração no ministério não está seguindo o que combinamos. Além disso você é candidato a presidente e está em campanha. Eu não acho isso certo. Por isso preciso que você peça demissão.
(22) - Frota, nós não estamos mais nos entendendo. A sua administração no ministério não está seguindo o que combinamos. Além disso você é candidato a presidente e está em campanha. Eu não acho isso certo. Por isso preciso que você peça demissão.
- Eu não peço demissão – respondeu Frota.
- Bem, então vou demiti-lo. O cargo de ministro é meu, e não deposito
mais em você a confiança necessária para mantê-lo. Se você não
vai pedir demissão, vou exonerá-lo.
...
(33) No início da noite do dia 12 o presidente empossou o novo ministro
no palácio do Planalto, diante das principais autoridades do país.
Nessa cerimônia deu-se um rápido episódio. Durou apenas alguns
segundos, e, afora as pessoas nele envolvidas, ninguém o percebeu.
Logo que Bethlem assinou o termo de posse, o presidente da Câmara
dos Deputados, Marco Maciel, moveu-se na direção do general.
Geisel, que estava ao seu lado, supôs que o jovem deputado fosse
cumprimentar o ministro. Congelou a cena chamando Bethlem: “Ministro,
quero apresentá-lo ao presidente da Câmara”. Passaram-se anos sem
que Maciel desse importância ou buscasse explicação para a cena.
Para Geisel, tudo fora muito simples: “Não é o presidente da
Câmara quem se apresenta ao ministro (34) do Exército, mas o
ministro do Exército, um colaborador do presidente, que deve ser
apresentado ao presidente da Câmara”.
...
No dia 12 de outubro de 1977, com a demissão de Frota, dissolveu-se a
mais perversa das anomalias introduzidas pela ditadura na vida
política (35) brasileira, restabelecendo-se a autoridade
constitucional do presidente da República sobre as Forças Armadas.
Encerrou-se o ciclo aberto em 1964, no qual a figura do chefe do
governo se confundia com a de representante da vontade militar,
tornando-se ora seu delegado ora seu prisioneiro. A maioria dos
instrumentos jurídicos do regime ditatorial sobreviveria ainda por
alguns anos, mas a recuperação do poder republicano do presidente
significou a disponibilidade do caminho da redemocratização.
Paradoxalmente, essa restauração partiu não só de um presidente
militar, mas do mais marcial dos generais que ocuparam a Presidência.
Geisel restabeleceu o primado da Presidência por meio de uma crise
militar da qual manteve afastados os políticos, a imprensa e a
opinião pública. Podem-se contar nos dedos de uma só mão os civis
que tiveram algum tipo de relevo na jornada de 12 de outubro e 1977.
Nesse paradoxo, contudo, não está mais uma das charadas da vida
política do país, e sim a solução do enigma que acompanha tanto
os mecanismos pelos quais os militarem tomam o poder como aqueles
pelos quais o deixam.
...
Desde 1968, quando através da vigência do Ato Institucional nº 5 o
Brasil entrara no mais longo período ditatorial de sua história,
dois presidentes prometeram restaurar as franquias democráticas.
Geisel, o único a não fazer essa promessa, acabou com a ditadura.
Entre 1974, ao assumir o governo, e 1979, ao deixá-lo, transformou
uma Presidência inerte, entregue a um colegiado de superministros,
num governo imperial. Converteu uma ditadura amorfa, sujeita a
períodos de anarquia militar, num regime de poder pessoal, e quando
consolidou esse poder – ao longo de um processo que culmina no dia
12 de outubro de 1977 – desmantelou o regime. Quando assumiu, havia
uma ditadura sem ditador. No fim de seu governo, havia um ditador sem
ditadura. No dia 31 de dezembro de 1978, 74 dias antes da conclusão
de seu mandato, acabou-se o Ato Institucional (36) nº 5, o
instrumento jurídico que vigorava por dez anos, por meio do qual o
presidente podia fechar o Congresso, cassar mandatos parlamentares e
governar por decretos uma sociedade onde não havia direito a habeas
corpus em casos de crimes contra a segurança nacional. Antes,
acabara com a censura à imprensa e com a tortura de presos
políticos, pilares dor regime desde 1968.
O objetivo desta obra é contar por que e como Geisel e Golbery, dois
militares que estiveram na origem da conspiração de 1964 e no
centro do primeiro governo constituído após sua vitória,
retornaram ao poder dez anos depois, com o propósito de desmontar a
ditadura. Geisel era um moralista, defensor convicto de um Executivo
forte, adversário do sufrágio universal como forma de escolha de
governantes e crítico acerbo do Parlamento como instituição
eficaz. Golbery, que em 1956 – em pleno governo constitucional –
pedia a criação de um Serviço Nacional de Informações, fundou-o
em 64 e dirigiu-o até 67. Conviveu com ele a partir de 1974, ajudou
a transformar o seu chefe, general João Baptista Figueiredo, em
presidente da República e, em 81, chamou sua criatura de “monstro”.
Deixou o governo amaldiçoando o que se denominava Comunidade de
Informações: “Vocês pensam que vão controlar o país cometendo
crimes e encobrindo seus autores, mas estão muito enganados. Vão
ser postos daqui para fora, com um pé na bunda”, disse Golbery ao
general Octavio Aguiar de Medeiros, chefe do SNI, no dia em que saiu
do palácio do Planalto, em agosto de 1981.
...
(37) O Sacerdote e o Feiticeiro acreditavam no Brasil e nele mandaram como poucas pessoas o fizeram.
Suas trajetórias ensinam como é fácil chegar a uma ditadura e como
é difícil sair dela.
(38) … No poder, os generais raramente contam as maquinações políticas
de que participam. …
O mais caudaloso dos generais que tomaram o poder no século XX,
Charles de Gaulle, escreveu cinco volumes de memórias… Quando se
trata de procurar os mecanismos políticos a que recorreu para
desmontar a associação dos militares com a extrema direita, a
repressão política e o colonialismo na Argélia, tudo somado não
junta dez páginas.
É possível arriscar uma explicação para esse fenômeno. Os militares
procuram preservar a própria mística segundo a qual, em quase todos
os idiomas, as Forças Armadas, por suas virtudes, colocam-se acima
dos partidos e da política civis. …
Se há uma grande diferença entre a política dos civis e a dos
militares, ela está no fato de que esta envolve uma corporação
burocrática fechada que precisa acima de tudo preservar alguma forma
de coesão. … (39) Prefeitos e médicos podem brigar abertamente.
Ambos podem mudar de partido, de hospital e, até mesmo, deixar a
política ou a medicina. Os militares não podem fazer isso com a
mesma facilidade, pois um capitão-de-fragata não pode trocar de
Marinha nem um major de cavalaria, de Exército. Permanecendo na
corporação, convivem com a mesma geração de colegas, respeitando
praticamente a mesma hierarquia ao longo de todas as suas vidas. …
Jamais se esquecem, por exemplo, os apelidos da juventude, ganhos no
tempo das escolas militares. Para um aspirante dos anos 30, o Brasil
foi presidido de 1964 a 1985 por Tamanco, Português, Milito, Alemão e Figa.
O silêncio dos generais foi compensado pela utilização maciça de
conceitos teóricos. Com isso, frequentemente misturaram-se ideias
brilhantes e preconceitos, dando-se força de dogma a algumas
racionalizações que, no máximo, seriam bons instrumentos de
especulação. Para explicar a brutalização da política,
recorreu-se demais ao que se chama de Doutrina da Segurança Nacional
ou, na sua denominação crítica, Ideologia da Segurança Nacional. …
...
(41) Para quem quiser cortar caminho na busca do motivo por que Geisel e
Golbery desmontaram a ditadura, a resposta é simples: porque o
regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, era uma grande
bagunça.
Como ela tomou conta do país e como a desmancharam é uma história mais
comprida. Começa na noite de 30 de março de 1964, quando a
democracia brasileira tomou o caminho da breca.
Gaspari, Elio. A Ditadura Envergonhada – as ilusões armadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
domingo, 20 de março de 2016
Redes colaborativas e precariado produtivo
O
modelo Peer-to-Peer
transformou a cooperação numa etapa fundamental da produção
cultural, tecnológica e econômica na sociedade contemporânea.
Nunca,
na história da cultura, tivemos tantas possibilidades de
descentralização dos meios de produção. Equipamentos digitais,
câmeras de vídeo, câmeras fotográficas, equipamentos para
músicos, DJs, produtores de audiovisual, computadores pessoais,
softwares livres, uma enorme capacidade em duplicação de CDs,
livros, música, que colocam em xeque o direito autoral tradicional e
fazem vislumbrar um capitalismo do excedente e da possibilidade da
livre circulação do conhecimento. Quais as bases “tecnológicas”
dessas mudanças?
Segundo
Michel Bauwens, em A
economia política da produção entre pares (The
political economy of peer production),
à medida que os sistemas sociais se transformam em redes
distribuídas, surge uma nova dinâmica produtiva: o modelo
Peer-to-Peer (P2P), ponto a ponto. Mais que uma nova tecnologia de
comunicação, é o modelo de funcionamento de novos processos
sociais. E faz surgir um terceiro modo de produção, de autoridade e
de propriedade, visando aumentar a participação generalizada de
atores equipotenciais. Suas características mais importantes,
segundo Bauwens, são: produção de valor de uso através da
cooperação livre entre produtos que têm acesso ao capital
distribuído; administração pela comunidade de produtores e não
por mecanismos de alocação do mercado ou por uma hierarquia
empresarial (“terceiro modo de autoridade”); disponibilizar
livremente o valor de uso segundo um princípio de universidade,
através de novos regimes de propriedade comum (“modo de
propriedade distribuída ou entre pares”). A infraestrutura do P2P
e das Redes Sociais Colaborativas tem algumas condições básicas,
propostas por Bauwens, necessárias para facilitar a emergência de
processos entre pares, que podemos resumir como: 1) A existência de
uma infraestrutura tecnológica instalada. Os movimentos para a
inclusão digital, os sistemas televisivos de file-serving
– TiVo – e as infraestruturas alternativas de telecomunicação
baseadas em meshworks
são representativos desta tendência; 2) A existência de sistemas
alternativos de informação e de comunicação que permitam a
comunicação autônoma entre agentes cooperantes. A Web permite a
produção, a disseminação e o consumo do material escrito, assim
como o podcasting
e o webcasting
criam uma infraestrutura alternativa de informação e comunicação
multimídia sem o intermédio dos meios de comunicação clássicos;
3) A existência de uma infraestrutura de software destinada à
cooperação autônoma global. Um número crescente de ferramentas de
colaboração que se inserem no software de redes sociais facilitam a
criação de confiança e capital social; 4) A existência de
infraestrutura legal que permita a criação de valor de uso e que o
proteja da apropriação privada. A General Public Licence (que
proíbe a apropriação do código software), a análoga Open Source
Initiative e certas versões da licença Creative Commons desempenham
esta função; 5) Por fim, o requisito cultural.
Para
Bauwens, assim como para Antônio Negri, Maurizio Lazzarato e os
teóricos do Capitalismo Cognitivo, esse requisito aponta para a
difusão da intelectualidade humana, com as transformações nas
formas de sentir e ser (ontologia), nas formas de conhecer
(epistemologia), e em valores que contribuem para a criação de um
“individualismo cooperativo”, uma das novas bases das redes
colaborativas.]
O
caso brasileiro
A
estas proposições de Bauwens podemos acrescentar a “dobra”
brasileira. Como enfrentar essa questão fugindo da criminalização
do produtor e do consumidor de bens culturais? Se um camelô vende CD
duplicado, DVD duplicado de música, de filme, se ele vende na porta
do show de funk o que o garoto acabou de ouvir e dançar e quer levar
para casa, será que o papel do Estado e das Corporações é
criminalizar esse consumidor, criador, propagador, esses agentes de
difusão virótica de cultura em que se transformaram os camelôs, os
adolescentes, as vídeo-locadoras, os cineclubes, os coletivos, os
blogueiros, as comunidades de troca de softwares, os produtores e
consumidores de cultura locais e globais?
Em
vez de reprimir, como legalizar “a cultura popular digital”
(Hermano Vianna) que está se formando? Que não é só a questão da
pirataria, é a oportunidade de um grupo de hip-hop ou de funk formar
sua equipe de som, tocar na favela, nas comunidades, nos clubes,
gravar sua música, queimar o seu CD e vender na porta do baile,
formando uma rede produtiva que dá trabalho, ocupação e sentido
para uma vida. Hoje, um computador pessoal de baixo custo e o acesso
à internet são bens culturais essenciais no capitalismo cognitivo,
pois o trabalho se tornou comunicacional e relacional. O desafio é
como universalizar e socializar esses meios de produção de
comunicação que são os meios de produção de cultura? Como apenas
10% da população brasileira possui computador em casa, então tem
que ter bolsa cultura, bolsa comunicação, bolsa informática e
colocar um computador funcionando em cada casa, centro, associação
de moradores, quiosques públicos. Comunicação e cultura
tornaram-se estratégicos para a sociedade civil. Nesse sentido, um
dos programas mais significativos do governo Lula são os Pontos de
Cultura, implementados pelo Ministério da Cultura em todo o país.
É
preciso reconhecer a dimensão produtiva desses movimentos que não
devem receber bolsas com contrapartidas, mas bolsas-investimento,
pois eles próprios já são a contrapartida (Giuseppe Cocco), são
os agentes produtivos que estão transformando realidades locais. São
modelos embrionários de transformação radical das políticas
públicas. São eles que produzem cultura a partir do local, vivem e
moram em territórios abandonados e revitalizados de dentro. Também
podemos falar de crise e extinção da tutela intelectual, econômica
sobre os movimentos, que desconfiam das relações assimétricas e do
roubo de capital simbólico e de um valor e um bem altamente valorado
no contexto contemporâneo: a produção de mundos. Dessa forma, é a
universidade, é a mídia, é o marketing social – ou o que eu
chamo de “a lavagem social” – que precisa das periferias para
se legitimar socialmente, intelectualmente
ou até economicamente.
Emergência
da cultura da periferia
A
ascensão e a visibilidade da produção cultural vinda das
periferias, subúrbios e favelas explicita esse novo valor. Uma
produção cultural deslocada que traz consigo embriões de políticas
públicas potenciais, com a possibilidade de redistribuição de
riqueza e de poder, constituindo-se também como lugar de trabalho
vivo e não meramente reprodutivo. Essa cultura das favelas e
periferias (música, teatro, dança, literatura, cinema) surge como
um discurso político “fora de lugar” e coloca em cenas novos
mediadores e produtores de cultura: rappers, funkeiros, b-boys,
jovens atores, performers, favelados, desempregados, subempregados,
produtores da chamada economia informal, grupos e discursos que vêm
revitalizando os territórios da pobreza e reconfigurando a cena
cultural urbana. Transitam pela cidade e ascendem à mídia de forma
muitas vezes ambígua, podendo assumir esse lugar de um discurso
político urgente e de renovação num capitalismo da informação.
A
cultura das favelas e periferias também é um contraponto para a
visão estereotipada das favelas como fábricas de morte e violência,
aspecto recorrente na mídia e no cinema que revela apenas a imagem
da favela-inferno. A complexidade e ambiguidade da “dobra”
brasileira no capitalismo global vem mostrando que as fábricas de
pobreza e violência são também territórios e redes de criação.
Essas vozes da periferia destituem os tradicionais mediadores da
cultura e passam de “objetos” a “sujeitos” do discruso,
concorrendo com os discursos da universidade e da mídia.
Nas
favelas e periferias produziram-se novas relações de vizinhança,
mutirões, redes de ajuda rizomáticas, cultura das festas, rituais
religiosos, samba, funk, hip-hop, todo um capital cultural e afetivo
forjado num ambiente de brutalidade compartilhado por diferentes
grupos sociais. Desses espaços surgem práticas de cultura,
estéticas e de redes políticas e de sociabilidade forjadas dentro
dos guetos, mas conectadas aos fluxos globais (não é só o tráfico
de drogas que consegue se globalizar) Grupos
e territórios locais apontando saídas possíveis, rompendo com o
velho “nacional-popular” populista e paternalista ou ideias
engessadas de “identidade nacional”, e surgindo como expressões
de um gueto global, dos guetos-mundo. Como falamos hoje de cidades
globais, com questões e problemas comuns. O novo produtor de cultura
das periferias faz parte de um precariado global: são os produtores
sem salário nem emprego. São os trabalhadores do imaterial.
Estado-Nação
versus Cidades da cooperação
Surgem
também novas alianças entre as favelas e outros grupos isolados,
como uma etapa no salto dos movimentos culturais locais e globais.
Cidades da cooperação que rivalizam com o Estado-Nação, e
funcionam à revelia dele. Movimentos que surgem da crise do Estado
como provedor. Mas como dar suporte a essas redes socioculturais?
Vivemos uma reestruturação produtiva. E na cultura isso é
explícito. A cultura é hoje o lugar do trabalho informal (não
assalariado). Movimentos que trabalham com informação, comunicação,
arte, conhecimento e que não estão nas grandes corporações. Uma
radicalização da democracia estimulando a produtividade social.
Essa experiência da cultura a partir dos movimentos socioculturais
surge como possibilidade de renovação radical das políticas
públicas. Não é só uma mudança da política para a cultura, mas
uma mudança da própria cultura política. São muitas iniciativas e
podemos destacar, dentre outras, a economia e a cultura do funk e do
hip-hop. São movimentos que produzem novas identidades e sentimentos
de pertencimento, de comunidade, para além da música, e criam
mundos e atividades produtivas. DJs, donos de equipamentos de som,
donos de vans, organizadores de bailes, seguranças e rappers.
Funkeiros que fazem até dez apresentações em bailes diferentes
numa única noite. Todo um ciclo econômico em torno da cultura
hip-hop e funk que explicita o primado da cultura na constituição
da economia cognitiva do capitalismo contemporâneo.
Os
movimentos culturais trabalham com uma ideia de educação não-formal
como porta de entrada para a educação formal e para o trabalho
vivo. Um movimento como o MST conseguiu construir escolas e propor
programas educativos com mais rapidez que muitas prefeituras no
interior do país. A produção cultural da periferia também não é
formal. É precária, informal, veloz, e se dá em redes
colaborativas, produzindo transferência de capital simbólico e real
sem os tradicionais mediadores culturais e de poder. Os movimentos
socioculturais podem atuar em todas as pontas: como produtores de
cultura, administradores e beneficiários do resultado da sua
produção. Se os atores culturais e sociais dispõem de recursos
intelectuais e materiais para assumirem esse protagonismo, qual o
papel das políticas públicas? Apoiar, estimular e promover, formar
lideranças, agentes de cultura, administradores de cultura, de
eventos culturais, dar as condições mínimas para esse
desenvolvimento.
Artigo
publicado em Global
Brasil.
Março,
abril e maio de 2007
Fonte: Caminhos para uma comunicação democrática. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2007. (Le Monde Diplomatique Brasil; 2) pp 111-119
Fonte: Caminhos para uma comunicação democrática. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2007. (Le Monde Diplomatique Brasil; 2) pp 111-119
O que fazer para democratizar as comunicações?
Para
se desenvolver uma consciência coletiva crítica sobre como “funciona” a grande mídia brasileira, é importante a criação
e atuação de veículos de comunicação alternativos.”
A
constatação de que os grupos dominantes da grande mídia comercial
brasileira sempre se recusaram a admitir qualquer avanço, por menor
que seja, no sentido da democratização das comunicações, e sempre
conseguiram que seus interesses prevalecessem na regulação do
setor, provoca um inevitável desalento.
Qual
seria uma perspectiva realista para orientar a ação dos vários
grupos organizados da sociedade civil que reivindicam pelo menos ser
ouvidos na formulação das políticas públicas de comunicações? A
primeira e óbvia resposta a essa pergunta é que não se pode
ingenuamente acreditar que a grande mídia, privada e comercial, um
belo dia, posse a apoiar projetos de democratização da comunicação,
abra espaço para a pluralidade e a diversidade de vozes de nossa
sociedade. Isso não acontecerá.
O
jornalista Bernard Cassen considerou essa “crença” uma ilusão
fundamental daqueles que trabalham na perspectiva de que “um outro
mundo é possível” nas comunicações. Em geral, dizia ele, se
esquece que as empresas da grande mídia são atores centrais do
processo de globalização e, portanto, a crítica ao processo
deveria se dirigir igualmente a elas. Essa crítica direta, todavia,
não ocorre porque aqueles que mantêm relações privilegiadas com
jornalistas dessa grande mídia temem perder o acesso a ela. Ao se
iludirem com os pequenos e ocasionais espaços oferecidos, deixam de
investir naquilo que é de fato importante e estratégico. Essa
ilusão, aliás, é parte importante do problema. Na verdade, ainda é
extremamente restrito o segmento da população que percebe, com a
necessária clareza, o que está em jogo. Tendo em vista a
centralidade que ocupa nas sociedades contemporâneas, a mídia
constitui-se hoje em locus privilegiado das disputas de poder. Seu papel mais importante decorre
da capacidade que tem de “construir a realidade” através da
representação dos diferentes aspectos da vida humana, sobretudo, da
representação da própria política e dos políticos. É através
da mídia que a política é construída simbolicamente e que adquire
significado.
Trata-se,
portanto, de uma questão de poder e nenhum ator político cede poder
voluntariamente. O Executivo brasileiro, aparentemente, não tem tido
forças para confrontar os grupos dominantes de mídia privados, eles
próprios poderosos atores econômicos e políticos. Ao contrário,
deles depende e se vê na contingência de com eles negociar não só
as propostas de políticas públicas de comunicações, mas,
inclusive, propostas em outras áreas (economia, educação, esportes,
cultura etc.). Ademais, não se pode esquecer que os atores que
exercem o controle do poder político somente são sensíveis a
demandas que se expressem de forma organizada e representem
potencialmente uma ameaça à sua permanência no poder. Por exemplo:
no ano de 2005 foram realizadas duas marchas de setores organizados
da sociedade civil interessados na reforma agrária a Brasília: MST
e Contag. O Executivo, diante da demanda organizada, viu-se obrigado
a negociar e atender a várias reivindicações desses movimentos. Há
alguma possibilidade, a curto e médio prazos, de termos uma marcha a
Brasília de movimentos sociais organizados da sociedade civil
brasileira reivindicando a democratização das comunicações?
Ao
contrário de setores como saúde, habitação e educação, por
exemplo, as comunicações não são percebidas, pela imensa maioria
da população como um direito humano básico. E mais: não se
percebe como o controle da mídia pode determinar o próprio controle
do poder político. Desta forma, uma das tarefas claras dos segmentos
interessados na democratização da comunicação é trabalhar no
sentido de ampliar a consciência coletiva da importância crítica
deste setor para a democracia. Um dia ainda teremos as políticas
públicas de comunicações percebidas pela maioria da população
como já são hoje percebidas as políticas públicas de setores como
saúde, habitação e educação. Até lá, os interesses dos grandes
grupos privados de mídia certamente continuarão a prevalecer na
regulação das comunicações.
Essa
constatação, no entanto, não significa que nada há por fazer. Ao
contrário. Existem várias iniciativas que podem e devem ser tomadas
por instituições e movimentos da sociedade civil que trabalham na
perspectiva de que “um outro mundo é possível” nas comunicações
brasileiras. Alguns exemplos, não necessariamente na ordem de sua
relevância:
1.
A criação de jornais, revistas, emissoras de rádio, de televisão
e agências on-line, alternativos à grande mídia, deveria
constituir prioridade absoluta. É preciso que grupos empresariais
alternativos e organizações da sociedade civil, por exemplo,
disputem as novas concessões de radiodifusão quando licitadas pelo
Ministério das Comunicações. Ao contrário de países como México,
Espanha, Itália e França – para citar apenas alguns – até hoje
não se conseguiu, a não ser por curtos períodos, constituir no
Brasil uma mídia alternativa e economicamente viável. Existem
experiências, em andamento, com histórico e potencial para se
firmarem definitivamente no “mercado” brasileiro. Exemplos
importantes são a Carta Capital, a Agência Carta Maior, a revista Caros Amigos,
dentre outros.
2.
A municipalização da competência para legislar sobre rádios
comunitárias, apoiada em interpretação específica do inciso IV do
Artigo 22 da Constituição, defendida pelo jurista Paulo Fernando
Silveira, abre uma nova perspectiva para a comunicação comunitária.
Projetos de lei nesse sentido já foram aprovados em importantes
cidades, inclusive em São Paulo.
A
modificação da atual legislação restritiva da radiodifusão
comunitária; a regularização das emissoras de rádio que a grande
mídia chama de “piratas”; a criação de um fundo de apoio
público permanente para a radiodifusão comunitária; a suspensão
do fechamento de emissoras de rádio pela Anatel e o fim das prisões
que continuam sendo feitas pela Polícia Federal, são bandeiras
fundamentais.
3.
Uma das explicações oficiais utilizadas para justificar o recuo do
governo federal em relação as Retransmissoras de Televisão
Institucionais (RTVIs), em 2005, foi a necessidade de que
primeiramente funcionem os Conselhos Municipais de Comunicação
Social (CMCS) Esses CMCS podem ser criados por iniciativa de qualquer
vereador e basta a aprovação de uma lei municipal. Uma referência
possível, por exemplo, seria o CMCS de Porto Alegre que, embora não
tenha sido ainda institucionalizado, funcionou e tem projeto de lei
pronto.
4.
Acompanhar as renovações e as novas outorgas de concessões das
emissoras de rádio e de televisão existentes no município poderia
ser uma das primeiras tarefas desses CMCS. Nem todos sabem que as
emissoras de rádio e televisão são concessões públicas
precárias, de 10 a 15 anos, respectivamente. O verdadeiro dono do
serviço público de radiodifusão é o cidadão e não o empresário
privado que explora a concessão.
Os
CMCS deveriam obter junto ao Ministério das Comunicações a relação
das concessões existentes em seu município e as datas de vencimento
de cada uma delas. Essa informação deveria ser amplamente divulgada
na comunidade. Subcomissões dos CMCS poderiam ser criadas para
acompanhar as programações dessas emissoras que usariam como
critério de avaliação as normas estabelecidas no capítulo da
Comunicação Social da nossa Constituiçao (Artigos 220 a 224), ou
seja, a ausência de oligopólios e monopólios na mídia; a
preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e
informativas; a promoção da cultura nacional e regional; a
regionalização da produção cultural, artística e jornalística;
e a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
À
época da renovação dessas concessões, as avaliações feitas nas
comunidades deveriam ser encaminhadas à Comissão de Ciência e
Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos
Deputados – que julga os pedidos – com cópia para os deputados
federais da região e como expressão da opinião da comunidade.
Outra
tarefa dos CMCS poderia ser explicitar as relações existentes entre
os políticos profissionais e entidades concessionárias de rádio e
televisão. Como se sabe, há no Brasil um vínculo histórico entre
a mídia e as elites políticas locais e regionais, quase sempre
escamoteado, e que muitas vezes só se revela pelo conhecimento
direto das relações de parentesco nas comunidades.
A
existência dos CMCS não é, evidentemente, condição necessária
para que se realizem as tarefas acima sugeridas e tantas outras.
Qualquer grupo de cidadãos pode realizá-las.
5.
Embora a Constituição determine a observação do princípio da
complementaridade dos sistemas privado, público e estatal para a
outorga e renovação de concessões, permissões e autorizações de
radiodifusão (Artigo 223), ele não tem sido observado.
Nessa
perspectiva, o fortalecimento da mídia pública e da estatal –
federal, estadual e municipal – é necessário na busca do próprio
equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal A recente
Medida Provisória criando a Empresa Brasileira de Comunicação é
um importante avanço neste sentido. Resta garantir que a comunicação
pública tenha mecanismos institucionais, tanto de gestão como de
controle, que garantam sua autonomia e tal independência.
6.
Em diversos países do mundo os “observatórios de mídia”
exercem um papel permanente de reflexão crítica sobre o setor de
comunicações. Eles constituem a melhor maneira de avaliar a mídia
de acordo com seus próprios critérios: objetividade, neutralidade,
pluralidade, diversidade e localismo, dentre outros. O resultado é
que, frequentemente, a grande mídia é flagrada em contradição com
suas próprias normas.
Tornar
públicas essas contradições, além de aumentar a consciência
coletiva crítica sobre como “funciona” a grande mídia, exerce
também um importante papel pedagógico. Envolver sindicatos,
associações comunitárias, entidades estudantis e cursos de
comunicação no trabalho de “observação” permanente da grande
mídia é, portanto, tarefa básica.
7.
Os cursos de comunicação deveriam preparar seus milhares de alunos,
prioritariamente, para exercer sua profissão em uma nova mídia que
precisa também ser construída como alternativa à grande mídia
privada. Isso implica mudar os velhos paradigmas dominantes no ensino
e na pesquisa de comunicação. Não é tarefa simples, nem fácil.
No entanto, é absolutamente necessária.
Outras
iniciativas locais como a introdução nos currículos escolares de
disciplinas sobre a mídia; a criação de associações de ouvintes,
telespectadores e leitores; e a criação de circuitos alternativos
de cinema e vídeo, certamente, poderão ser tomadas.
Como
se vê, apesar do forte desequilíbrio existente na correlação de
forças entre os principais atores que têm interesses em jogo no
setor de comunicações, muito pode ser feito para a sua
democratização. Às vezes avanços não acontecem em razão de
muitas contradições e disputas internas existente dentro do próprio
campo alternativo. Esse é outro obstáculo histórico a ser superado
por aqueles que acreditam que “um outro mundo é possível” nas
comunicações brasileiras.
Outubro de 2007
Autor: Venício A. de Lima
Fonte: Caminhos para uma comunicação democrática. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2007. (Le Monde Diplomatique Brasil; 2) pp 83-91
quarta-feira, 5 de agosto de 2015
Uma oração para atingir os bem-de-vida com o máximo possível de aflições
Eu já faço uma oração semelhante embora tenha sido bastante recriminado por puristas e pessoas politicamente corretas. Eu sei. Eu tento buscar a ahimsa... mas eu sou um ser humano repleto de contradições.
Esta oração foi feita por um norte-americano para norte-americanos. Nós poderíamos (eu pretendo, colaborações serão bem-vindas) escrever uma adaptação para a realidade brasileira que, analisando bem, não é tão diferente.
A ORAÇÃO DO POVO
Moore, Michael. Stupid White Men: uma nação de idiotas. São Paulo: Francis, 2003.
Cap. 11; pp 237-243.
Cap. 11; pp 237-243.
Acho que foi Tomás de Aquino que observou uma vez: “Nada como sua
própria merda para fazer-lhe perceber o quanto você fede”.
Em julho de 2001, Nancy Reagan, na ocasião numa ronda incansável ao
redor do leito de morte do marido, despachou os antigos capangas de
Reagan, Michael Deaver e Kenneth Duberstein, para Washington, D.C.,
com uma mensagem confidencial a George W. Bush e à liderança
republicana. O partido havia se dividido sobre a questão da pesquisa
relacionada às células-tronco, a avançada ciência que retira
células precursoras de embriões humanos rejeitados e as usa para
tratar de pessoas com doenças debilitantes, como o mal de Alzheimer
(enfermidade que castigava o ex-presidente Reagan), ou para encontrar
a cura para outras doenças fatais. Os fanáticos militantes contra o
aborto (incluindo aí os Reagan e os Bush), que haviam controlado o
partido por décadas, exigiram que não houvesse pesquisa embrionária
alguma, independentemente do sofrimento dos vivos.
W. desejava banir a pesquisa, dizendo à opinião pública, em
resumo, que enxergava bebezinhos vivos naqueles embriões mortos.
Acho que ele tinha medo de que as mulheres saíssem correndo para
fertilizar seus óvulos só com o intuito de obter um embrião, que
depois abortariam e venderiam para centros de pesquisa (tal é o
nível da fantasia dos doidos conservadores que governam este país).
Mas agora os parafusos frouxos
estavam sendo apertados, pois um certo número de conservadores, de
Thommy Thompson a Connie Mack, estava aprovando a pesquisa das
células-tronco, declarando que este estudo não tinha nada a
ver com a retirada de “vidas humanas”. De repente, a mídia ficou
repleta de reportagens sobre o motim conservador em relação a essa
questão. A Right to Life [organização que tem um enorme poder de
lobby no EUA] foi à
guerra para conter a maré em direção à razão.
Nada daquilo, no entanto, parecia intimidar ou comover W., mais
preocupado com a marca de creme dental que o primeiro-ministro
britânico usava do que com a mudança de sua posição a respeito do
aborto.
Mas então Nancy mudou de ideia: a quase-viúva pediu a Bush para
mudar de ideia e aprovar, apoiar, financiar e patrocinar a pesquisa
das células-tronco. A pesquisa, transmitiu ela aos quatro ventos por
intermédio de seus garotos de recado, poderia salvar Ronnie ou os
futuros Ronnies dos males de Alzheimer, Parkinson, Lou Gehrig e de
outras doenças catastróficas. Nos últimos anos, Nancy já vinha
modificando sua posição em relação ao aborto e agora saía do
armário pela primeira vez e afirmava que um embrião NÃO é um ser
humano.
Naquele momento, todo o time mudou de campo. A convocação da
diretoria havia sido feita: DANEM-SE OS NÃO-NASCIDOS! SALVEM OS
“GIPPER”! [designação dada a um grupo conservador e
neo-liberal; usada com frequência como apelido de Ronald Reagam].
E dito e feito. Em poucos dias, os
princípios de Baby
Bush desapareceram mais rápido que uma estagiária de Condit [Gary
Condit, congressista democrata que teve um caso adúltero escandaloso
com uma jovem estagiária descoberta morta num parque de Washington,
D.C. O caso dos dois foi revelado quando ela desapareceu. Um ano
depois, descobriram que ele não foi responsável pelo
desaparecimento da jovem. Mesmo assim, Condit perdeu a reeleição.
(n.t.)]. Uma ordem veio da Casa branca afirmando que agora não havia
nada de errado com “determinada” pesquisa de células-tronco.
Bush foi à TV e nada disse a respeito de embriões humanos serem
considerados seres humanos.
Depois de décadas empurrando goela abaixo que “a vida humana
começa na concepção”, vinham agora os mesmos indivíduos que
jogaram no lixo o direito da mulher ao aborto nos dizer que estes
“bebês não-nascidos” não era nada mais que um monte de tecido
embrionário morto – que, aliás, poderia muito bem manter vios por
mais uns anos alguns doentes ricaços!
Em todo o país, outros chefões republicanos juntaram-se ao clamor
por mais pesquisas relacionadas às células-tronco. Orrin Hatch
[senador republicano, conservador famoso por ser contrário ao aborto
(n.t.)] liderou o comando, dizendo: “Não é uma questão de
destruição da vida humana, é uma questão de facilitar a
vida humana”. Até mesmo Strom “só-em-casos-de-estupro-e-incesto”
Thurmond concordou: “Potencialmente, a pesquisa das células tronco
pode tratar e curar enfermidades como esclerose múltipla, mal de
Alzheimer, mal de Parkinson, doenças cardíacas, vários tipos de
câncer e diabetes... Apoio essa ciência pioneira e o patrocínio
federal a essa pesquisa”, disse o velho, cuja filha, não tão
coincidentemente, sofre de diabetes juvenil.
Não há nada mais amável que um
hipócrita sem-vergonha de direita. Eles passam a vida inteira
tornando a vida de todo mundo um inferno mas, assim que um pouquinho
de desgraça atinge suas vidinhas, o que vale é “dane-se a
ideologia – queremos resultados!” Eles devotam todas as suas
energias durante anos para dificultar que negros, garotas ou caras
que curtem caras desenvolvam-se ou sejam tratados com um mínimo de
dignidade, mas na hora que alguém de sua família
está sendo prejudicado – ooopa, é melhor você sair da frente do
meu filho, rapaz – ele é especial!
Reagan, Bush, Cheney e todo o seu
time são responsáveis por décadas de legislação cruel, elaborada
para punir os pobres, prender os que sofrem de problemas de saúde
(viciados em drogas) ou cortas os direitos de pessoas desesperadas
que vivem “ilegalmente” nos Estados Unidos. Mas, quando eles
se encontram em uma situação de desespero, de repente adquirem a
compaixão de São Francisco e a misericórdia de Madre Teresa.
É missão de vida para os ricos e
poderosos destruir nosso ar, poluir nossa água, assaltar nossos
bolsos e fazer com que seja impossível que consigamos qualquer ajuda
na janelinha do guichê, mas quando seus atos começam a assombrar
suas vidas, não
perdem tempo caçando culpados – procuram logo um jeito de nos dar
esmolas.
Bem, acho que isso é bom! Vamos
esperar que consigam tudo o que querem. Se é preciso uma tragédia
pessoal para que eles readquiram à sã consciência, que seja.
Afinal de contas, apesar de suas casas de sete banheiros e de suas
garagens cheias de Bentleys, eles são gente como a gente. São
H-U-M-A-N-O-S. E
quando uma pessoa querida de sua convivência está numa cama,
molhando sem parar suas fraldas geriátricas, mijando toda hora em
seus lençóis de design moderno e balbuciando tal qual as almas
estropiadas, de quem eles mesmos cortaram a assistência e verba do
orçamento federal – bem, nessas horas, rico ou pobre, o pus das
feridas começa a ficar parecido. A igualdade é atingida – uma
nação, incapacitada, justiça para todos.
E agora, graças ao azar de Ronald Reagan, teremos um pouquinho
da pesquisa de células-tronco bancada pelo governo – que talvez
encontre a cura para o mal de Alzheimer e sabe-se lá o que mais.
Pensem só nisso. É preciso que algo desse tipo aconteça para que
ocorra um mínimo de investimento na pesquisa científica. Nosso
amado ex-presidente, que ajudou a arruinar a vida de milhões de
mulheres porque acreditava que embriões eram criancinhas, agora se
encontra num apuro físico – e só porque hordas de conservadores
consideram-no um santo, o sofrimento de milhões de norte-americanos
comuns será aliviado?
Este fenômeno – a mudança de opinião dos abonados assim que
tornam-se vítimas – está acontecendo em todo lugar. Em Nova York,
o prefeito republicano Rudolph Giuliani, que por anos se opôs a que
a cidade custeasse a assistência médica de crianças carentes,
sofreu uma virada radical – depois que descobriu ter câncer. “Devo
admitir”, um humilde Giuliani explicou à imprensa, “que ter
câncer me fez ver muitas coisas sob uma nova luz”.
Ou veja o caso de Big Dick Cheney. Cheney tranquilamente breca
qualquer iniciativa contra os gays que possa vir da Casa Branca. Por
quê? Porque sua filha é lésbica. Qual seria a posição de Dick
Cheney com relação a esse assunto se ninguém próximo a ele fosse
gay? Provavelmente não muito longe da estrada no Wyoming em que
Matthew Shepard [rapaz de 21 anos, assassinado em um crime antigay
cometido em 1998, no Estado de Wyoming; tornou-se mártir da
comunidade gay (n.t.)] foi amarrado e surrado numa cruz de ripas de
cerca. Essas bichas e sapatas adquirem toda uma nova dimensão no
momento em que são carne de nossa carne. O dia em que sua filha saiu
do armário serviu ao menos para que Dick Cheney parasse de agir como
um todo-poderoso republicano, para agir como ser humano e pai. Depois
que a coisa chega em casa, é bem difícil continuar comportando-se
como um imbecil.
Então decidi que a única esperança que temos neste país de trazer
socorro aos doentes, proteção às vítimas de discriminação e uma
vida melhor para quem sofre é rezar sem parar para que aqueles que
estão no poder sofram com as mais horrendas doenças, tragédias e
circunstâncias. Porque garanto, quando é um deles que fica na reta,
trilhamos todos o caminho da salvação.
Com isso em mente, escrevi uma oração para apressar a
recuperação de todos os necessitados, pedindo a Deus para castigar
todo líder político e executivo de grande corporação com alguma
forma de doença fatal. Sei que não é bonito pedir a Deus para
prejudicar os outros, mas gostaria de pensar que Deus não é só
misericordioso e justo, como também é dono de uma ironia muito
apurada. Acho que Deus gostaria de ver um pouco de pesar atingir
aqueles que tanto têm abusado de seu planeta e de suas crianças.
Então escrevi “Uma oração para atingir os bem-de-vida com o
máximo possível de aflições”. Afinal, a história conta que
Deus curte um castigozinho à moda antiga de vez em quando – e quem
melhor para punir do que os brancos boçais que nos deixaram nessa
zona?
Por favor, reze essa oração comigo a cada manhã, de preferência
antes da abertura da Bolsa de Nova York. Não importa qual seja sua
religião ou se você tem alguma. Esta reza é não-discriminatória,
portátil e não tem pré-requisitos.
Metade da África em breve morrerá por causa da Aids. Doze milhões
de crianças nos Estados Unidos não têm acesso à alimentação de
que necessitam. O Texas ainda executa cidadãos inocentes. Estamos
perdendo tempo. Abaixem suas cabeças e juntem-se a mim agora...
Uma oração para atingir os bem-de-vida com o máximo possível de
aflições
Amado Senhor (Deus/Jeová/Buda/Bob/Ninguém):
Nós Vos rogamos, ó misericordioso, para trazer conforto àqueles
que sofrem hoje por quaisquer razões que Vós, a Natureza ou o Banco
Mundial tenham considerado convenientes. Compreendemos, ó Pai
celestial, que Vós não podeis curar todos os enfermos imediatamente
– isto certamente esvaziaria os hospitais criados pelas boas
freiras em Vosso nome. E aceitamos que Vós, o Onisciente, não
podeis eliminar todo o mal do mundo, pois isto certamente Vos
deixaria sem trabalho.
Particularmente, amado Senhor,
pedimos a Vós que atinjais todo membro da Câmara dos Deputados com
horríveis e incuráveis cânceres no cérebro, no pênis e na mão
(não necessariamente nesta ordem). Vos pedimos, Amado Pai, que todo
senador sulista veja-se na situação do dependente de drogas e
encontre-se assim ele mesmo condenado à prisão perpétua. Vos rogamos para que cada filho ou filha de cada senador da Montain
Time Zone [área de fuso horário que abrange a região das Montanhas
Rochosas (n.t.)] torne-se gay de verdade;
para que cada filho e cada filha dos senadores do leste do país seja
condenado à cadeira de rodas e para que os filhos dos senadores do
oeste sejam obrigados a estudar na escola pública. Vos imploramos,
Pai de misericórdia, que, da mesma forma como Vós transformastes a
esposa de Lot em uma estátua de sal, transformai os ricos – todos
os ricos – em miseráveis e sem-teto, arrancando-lhes todos os seus
rendimentos, posses e economias. Removei todo o poder de suas
posições, e, sim, fazei com que eles percorram o vale da escuridão
da Previdência Social. Condenai-os a uma existência de fritar
hambúrgueres e fugir dos cobradores. Deixai-os ouvir os gemidos dos
inocentes sentados no meio do corredor 43 e deixai-os sentir o ranger
de dentes podres e cariados, tal como os 108 milhões de cidadãos
que não possuem plano odontológico.
Pai Celestial, oramos para que todo líder branco (em especial os
alunos da Bob Jones University [Universidade fundamentalista cristã
fundada pelo líder religioso Bob Jones, conhecida por manter uma
política de discriminação racial com base em princípios
religiosos (n.t.)] que acredita que os negros estão numa boa nos
dias de hoje seja acordado de seus sonhos amanhã de manhã com a
pele preta como uma limusine, para que aprecie as riquezas e colha os
frutos de ser negro nos Estados Unidos. Humildemente vos pedimos para
que Vossos ungidos, os bispos da Santa Igreja Católica Apostólica
Romana, sejam castigados com ovários e gestações não-planejadas,
juntamente com um panfleto sobre o método da tabelinha.
Por fim, Amado Senhor, vos pedimos para que obrigueis Jack Welch
[executivo famoso por suas estratégias de liderança (n.t.)] a andar
no rio Hudson que ele poluiu, para que forceis os executivos de
Hollywood a sentarem e assistirem a seus próprios filmes
ininterruptamente, para que façais com que Jesse Helms [senador
ultraconservador, formulou projetos de lei contra gays (n.t.)] seja
beijado na boca por um homem e para que torneis Chris Matthews
[jornalista acusado de receber propina da Enron (n.t.)] mudo, para
que o ar – rapidamente – seja extraído dos pulmões de Bill
O'Reilly [jornalista conservador, apresentador do programa “The
O'Reilly Factor”, da emissora Fox News (n.t.)] e para que
transformeis em cinzas todos os responsáveis pelos que fumam em meu
escritório. Ah, sim, e para que jogueis com fúria uma praga
de gafanhotos que se abrigue na peruca do Líder da Minoria no Senado
[Trent Lott, líder do Partido Republicano no Senado, muito parodiado
por usar uma vistosa peruca (n.t.)] do grande Estado do Mississipi.
Que Vós possais ouvir nossas preces e atendê-las, ó Rei dos Reis,
que senta no alto e nos assiste da melhor forma que conseguis,
considerando quão ferrados somos. Concedei-nos alívio de nossa
miséria e sofrimento, pois sabemos que os homens a quem Vós ireis
ferir serão rápidos em seus esforços para livrar-se de sua
desgraça, o que por sua vez poderá livrar-nos da nossa.
Rezemos, assim, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.
quarta-feira, 3 de junho de 2015
Discurso proferido por Russell Means em julho de 1980.
Em um dia qualquer, encontrei este texto navegando pela Internet. Li e este texto respondeu inúmeras questões que habitavam minha mente... não encontrei este texto em português e minha mente inquietante me levou a traduzi-lo. Não sou um tradutor profissional, portanto, no final, existe um link para o original em inglês. Qualquer correção será muito bem recebida! Leiam, vivenciem... acho que não sou o único que se inquieta com estas questões.
A
Revolução e os Índios Americanos: “O Marxismo é tão estranho
para minha cultura quanto o Capitalismo”
por
Russell
Means
O
discurso a seguir foi proferido por Russell Means em julho de 1980,
antes do encontro de milhares de pessoas do mundo todo que se
reuniram para o Black Hills International Survival Gathering
(Encontro Internacional para a preservação das Colinas Negras),
em Black Hills na South Dakota (Colinas Negras em Dakota do Sul).
Este é o discurso mais famoso de Russell Means.
Membro
da tribo Oglala Lakota, ele talvez tenha sido a personalidade mais
destacada no Movimento Indígena Americano, começando com a
ocupação do Wounded Knee em 1973. Ele também teve uma carreira
artística atuando como Chingachgook no filme Last
of the Mohicans (O Último dos Moicanos).
Ele morreu em 22 de outubro de 2012 aos 72 anos de idade.
"A
única forma possível de iniciar uma declaração deste gênero é
dizendo que eu detesto escrever. O processo em si mesmo sintetiza o
conceito Europeu de pensamento “legitimado”; o quê está escrito
adquire uma importância que é negada ao que é dito. Minha cultura,
a cultura Lakota, possui uma tradição oral, portanto, em princípio,
eu renego a escrita. Esta é uma das maneiras que o mundo do homem
branco tem para destruir as culturas dos povos não-Europeus, a
imposição de uma abstração sobre a relação oral do povo.
Portanto,
o que você lê aqui não é o que eu escrevi. Isto é o que eu disse
e alguém escreveu minhas palavras ditas. Eu permitirei que seja
assim porque me parece que a única maneira de se comunicar com o
mundo branco é através das folhas secas e mortas de um livro. Eu
realmente não me importo se minhas palavras alcançarão os brancos
ou não. Eles já demonstraram através de sua história que não
conseguem ouvir, não conseguem ver; os brancos conseguem apenas ler
(é claro que existem exceções, mas as exceções apenas confirmam
a regra). Eu estou mais preocupado com o povo indígena americano,
estudantes e outras pessoas, que começam a ser absorvidos pelo mundo
branco através de universidades e outras instituições. Mas mesmo
assim isto é apenas uma preocupação periférica. É extremamente
possível que uma mente branca se desenvolva no interior de uma cara
vermelha; e se isto for uma escolha pessoal, então, que assim seja,
mas eu não vejo nenhuma utilidade para ela. Isto é parte do
processo de genocídio cultural sendo impetrado atualmente pelos
Europeus contra o povo Indígena Americano. Minha preocupação é
com os Indígenas Americanos que tem escolhido resistir a este
genocídio, mas que devem estar confusos sobre como agir.
Vocês
notaram que eu uso o termo Índio Americano e não Nativo Americano
ou Povo Indígena Nativo ou Ameríndios, quando estou me referindo a
meu povo. Tem havido alguma controvérsia em relação a tais termos,
e sinceramente, neste ponto, eu acho isto um absurdo. Primeiramente
parece que Índio Americano é um termo que tem sido rejeitado como
de origem Europeia – o que é verdade. Mas todos os termos acima
são de origem Europeia; a única maneira não-Europeia é falar dos
Lakota – ou, mais precisamente, dos Oglala, Brule, etc. – e dos
Dineh, dos Miccousukee, e todos os demais centenas de nomes corretos
de cada tribo.
Existe
também alguma confusão sobre a palavra Índio, uma crença errônea
de que se refere a alguém do país Índia. Quando Colombo se lavou
nas praias do Caribe, ele não estava procurando por um país chamado
Índia. Os Europeus chamavam aquele país de Industão (Hindustan) em
1492. Procure nos mapas antigos. Colombo chamou os povos tribais que
ele encontrou de "Indio" do italiano in
dio,
que significa "em Deus”.
É
necessário um grande esforço por parte de cada Índio Americano
para não se tornar Europeizado. E a força para este esforço só
pode vir dos caminhos da tradição, os valores tradicionais que os
mais velhos conservam. Deve vir da aliança, das quatro direções,
das relações: não deve vir das páginas de um livro ou de milhares
de livros. Nenhum Europeu será capaz de ensinar um Lakota a ser
Lakota, um Hopi a ser Hopi. Um doutor em "Estudos Indígenas"
ou em "educação" ou em outra matéria qualquer não é
capaz de transformar uma pessoa em um ser humano ou fornecer
conhecimento dentro das formas tradicionais. Ele é apenas capaz de
formar em você uma mente Europeia, um estrangeiro.
Eu
preciso ser claro sobre uma questão aqui, pois me parece que existe
alguma confusão sobre isto. Quando eu falo de Europeus ou de
mentalidade Europeia, eu não quero que existam falsas distinções.
Eu não estou dizendo que de um lado existe os subprodutos de alguns
milhares de anos de genocídio, desenvolvimento intelectual Europeu
reacionário, que seja ruim; e de outro lado existe um
desenvolvimento intelectual revolucionário que seja bom. Eu estou me
referindo aqui à tal chamada teoria do Marxismo e anarquismo e
“esquerdismo” em geral. Eu não acredito que estas teorias possam
ser separadas do restante da tradição intelectual Europeia. Esta é
a mesma velha ladainha.
O
processo começou muito antes. Newton, por exemplo, "revolucionou"
a física e as chamadas ciências naturais reduzindo o universo
físico em uma equação matemática linear. Descartes fez a mesma
coisa com a cultura. John Locke com a política, e Adam Smith com a
economia. Cada um destes "pensadores" pegaram um pedaço da
espiritualidade da existência humana e a converteu em um código,
uma abstração. Eles continuaram onde o Cristianismo parou: eles
"secularizaram" a religião Cristã, como os "acadêmicos"
gostam de dizer – e desta forma eles conseguiram tornar a Europa
mais capaz e pronta para agir como uma cultura expansionista. Cada
uma das revoluções intelectuais serviram para abstrair a cultura
Europeia ainda mais, a remover a maravilhosa complexidade e
espiritualidade do universo e substituí-la por uma sequência
lógica: um, dois, três. Responda!
E
isto é a chamada "eficiência" na mente Europeia. Qualquer
coisa que seja mecânica é perfeita; qualquer coisa que pareça
funcionar no momento – isto é, prova que o modelo mecânico está
correto – é considerada certa, mesmo quando seja claramente falsa.
Este é o motivo pelo qual a "verdade" muda tão
rapidamente na mentalidade Europeia; as respostas que resultam de tal
processo são apenas tapa-buracos, apenas temporários, e devem ser
continuamente descartados em função de novos tapa-buracos que
garantam os modelos mecânicos e os mantenham (os modelos) vivos.
Hegel
e Marx são herdeiros do pensamento de Newton, Descartes, Locke e
Smith. Hegel finalizou o processo de secularização da teologia –
e isto é posto em seus próprios termos – ele secularizou o
pensamento religioso com o que a Europa entende como o universo. E
então Marx adaptou a filosofia de Hegel aos termos de "materialismo"
que é o mesmo que dizer que Marx e Hegel trabalharam junto neste
processo de desespiritualização. Novamente, nas palavras do próprio
Marx. E agora isto é visto como o potencial futuro revolucionário
da Europa. Europeus podem ver isto como revolucionário, mas os
Índios Americanos veem isto simplesmente como ainda mais do mesmo
conflito Europeu entre o ser e o obter. As raízes da nova forma
Marxista do imperialismo Europeu baseados em Marx – e seus
seguidores – está ligado à tradição de Newton, Hegel e outros.
O
Ser é uma proposição espiritual. Obter é um ato material.
Tradicionalmente, Índios Americanos sempre tentaram ser o melhor
povo que podiam. Parte deste processo espiritual era e é abandonar a
riqueza, descartar a riqueza afim de não obter. O ganho material é
um indicador de um status falso entre povos tradicionais, enquanto é
a "prova de que o sistema funciona" para Europeus.
Claramente, existem dois pontos de vista completamente opostos em
questão aqui, e o Marxismo está bem distante ao da visão do Índio
Americano. Mas vamos olhar para uma implicação maior disto; este
não é um debate meramente intelectual.
A
tradição Europeia materialista de desespiritualização do universo
é muito semelhante ao processo mental que passa pela desumanização
do outro. E quem parece ser o mais hábil em desumanizar outra
pessoa? E por que? Soldados tem um longo aprendizado sobre combate ao
inimigo antes de entrar em combate. Assassinos fazem o mesmo antes de
saírem para cometer o assassinato. Soldados nazistas da SS agiram
assim com os prisioneiros dos campos de concentração. Policiais
fazem isto. Líderes de corporações agem assim com trabalhadores
quando os envia para minas de urânio e siderúrgicas. Políticos
agem assim com todo mundo. E a parte do processo que é comum para
cada grupo que desumaniza o outro é que está tubo bem matar ou
destruir outra pessoa. Um dos mandamentos Cristãos diz, "Não
matarás", pelo menos não matarás seres humanos, portanto o
truque é converter mentalmente as vítimas em seres não humanos.
Assim você pode declarar a violação de seu próprio mandamento
como uma virtude.
Nos
termos da desespiritualização do universo, o processo mental
funciona de maneira que torna uma virtude destruir o planeta. Termos
omo progresso e desenvolvimento são usados para encobrir palavras
aqui, as maneiras como vitória e liberdade são usadas para
justificar a carnificina no processo de desumanização. Por exemplo,
um especulador imobiliário se refere como "desenvolvimento"
um pedaço de terra arrasado para abrir uma pedreira de cascalho;
desenvolvimento neste caso significa uma destruição total e
permanente, quando a própria terra é removida. Mas a lógica
Europeia é de obter umas poucas toneladas de cascalho com a qual
mais terras podem ser “desenvolvidas” com a construção de
estradas de rodagem. Em última análise, o universo inteiro está
pronto – na visão Europeia – para este tipo de insanidade.
O
mais importante aqui, talvez, é que os Europeus não sentem nenhum
senso de perda nisto tudo. Afinal, seus filósofos
desespiritualizaram a realidade, portanto não há nenhuma satisfação
(para eles) a ser obtida em simplesmente observar a maravilha de uma
montanha ou lago ou de um ser humano. Não, a satisfação é medida
em termos de ganho material. Portanto a montanha se transforma em
cascalho, o lago serve para refrigerar uma fábrica, e as pessoas são
adaptadas para este processo através das moendas de doutrinação
que os Europeus gostam de chamar de escolas.
Mas
cada nova peça deste “progresso” aposta em algo fora do mundo
real. Retirar combustível para uma máquina mecânica é um exemplo.
A pouco mais de dois séculos atrás, quase todo mundo usava carvão
– um item natural, renovável – como combustível para as
necessidades humanas de aquecimento e alimentação. Junto veio a
Revolução Industrial e o carvão se tornou um combustível, assim
como a produção se tornou um imperativo social para a Europa. A
poluição começou a se tornar um problema nas cidades, e a terra
foi dilacerada a fim de fornecer carvão visto que a madeira sempre
havia sido obtida ou colhida sem grandes prejuízos para o ambiente.
Mais tarde, o petróleo se tornou o combustível mais importante,
assim que a tecnologia de produção se aperfeiçoou através de uma
série de “revoluções” científicas. A poluição aumentou
dramaticamente, e ninguém ainda sabe os custos ambientais reais que
o bombeamento de todo este petróleo do interior da terra poderá
causar ao longo do tempo. Agora existe uma “crise de energia"
e o urânio está se tornando o combustível dominante.
Capitalistas,
pelo menos, desenvolverão o uso do urânio como combustível apenas
se isto lhes proporcionar um bom lucro. Esta é sua ética, e talvez
isto nos garanta ainda algum tempo. Marxistas, por outro lado, podem
desenvolver o uso do urânio como combustível o mais rápido
possível pois este é o combustível mais “eficiente”
disponível. Esta é sua ética, e eu não consigo ver qual é
preferível. Como eu disse, o Marxismo está muito bem inserido no
meio da tradição Europeia. É a mesma ladainha.
Existe
uma regra de ouro que pode ser aplicada aqui. Você não é capaz de
julgar a natureza real de uma doutrina revolucionária Europeia com
base nas mudanças que ela propõe fazer de dentro do poder da
estrutura e sociedade Europeia. Você apenas a pode julgar pelos
efeitos que isto acarretará nos povos não-Europeus. Digo isto
porque toda revolução na história Europeia apenas serviu para
reforçar as tendências e habilidades da Europa em exportar
destruição para outros povos, outras culturas e para o próprio
meio ambiente. Eu desafio qualquer um a apresentar um exemplo em que
isto não seja verdade.
Então
nós agora, como povo Indígena Americano, somos convidados a
acreditar que um “nova” doutrina revolucionária Europeia como o
Marxismo era reverter os efeitos negativos que a história Europeia
teve sobre nós. As relações de poder Europeu serão ajustados mais
uma vez, e supõem-se isto fará as coisas ficarem melhores para
todos nós. Mas o que isto realmente significa?
Exatamente
agora, hoje, nós que vivemos na Reserva Pine Ridge estamos vivendo
no que a sociedade branca designou como “Área de Sacrifício
Nacional”. Isto significa que nós temos muita reserva de urânio
aqui, e a cultura branca (não nós) precisamos deste urânio como
material de produção de energia. O mais barato, mais eficiente
jeito para a indústria extrair e processar este urânio é despejar
os resíduos da produção exatamente aqui nos sítios de escavação.
Exatamente aqui onde nós vivemos. Este resíduo é radioativo e
tornará a região toda inabitável para sempre. Isto é considerado
pela indústria, e pela sociedade branca que criou esta indústria,
como sendo um preço “aceitável” a pagar pelo desenvolvimento
destes recursos de energia. Ao longo do caminho eles também planejam
drenar o lençol de água que está debaixo desta área da Dakota do
Sul como parte do processo industrial, assim a região se tornará
duplamente inabitável. O mesmo tipo de situação está ocorrendo
logo abaixo nas terras Navajo e Hopi, logo acima nas terras dos
Cheyenne do Norte e Crow, e outros lugares. Trinta por cento do
carvão do Oeste e metade dos depósitos de urânio nos Estados
Unidos estão em reservas indígenas, portanto de forma alguma isto
pode ser chamado de uma questão menor.
Nós
estamos resistindo a sermos transformados em uma Área de Sacrifício
Nacional. Nós estamos resistindo a sermos transformados em um povo
de sacrifício nacional. Os custos deste processo industrial não são
aceitáveis para nós. É um genocídio escavar urânio aqui e drenar
o lençol de água – não mais, não menos.
Agora
suponhamos que em nossa resistência contra o extermínio comece a
agregar aliados (nós temos). Vamos supor ainda que nós fôssemos
tomar o Marxismo revolucionário como se diz: que pretende nada menos
do que a derrubar completamente a ordem capitalista Europeia que tem
apresentado esta ameaça sobre nossa existência. Esta parece ser uma
aliança natural para o povo Indígena Americano estabelecer. Afinal,
como dizem os Marxistas, são os capitalistas que nos definem como
sacrifício nacional. Isto é verdade até aqui.
Mas,
como eu tenho tentado apontar, esta “verdade” é muito
traiçoeira. O Marxismo Revolucionário está comprometido ainda mais
com a perpetuação e perfeição do verdadeiro processo industrial
que está destruindo todos nós. Ele oferece apenas a
“redistribuição” dos resultados – o dinheiro, talvez –
desta industrialização para uma parcela maior da população. Ele
oferece retirar a riqueza dos capitalistas e repassá-la adiante; mas
a fim de fazer o quê, o Marxismo deverá manter o sistema
industrial. Mais uma vez, o poder das relações dentro da sociedade
Europeia será alterado, porém mais uma vez os efeitos sobre os
povos Indígenas Americanos aqui e os não-Europeus em qualquer lugar
continuarão a ser os mesmos. É a mesma coisa quando o poder foi
redistribuído da igreja para os negócios privados durante a chamada
revolução burguesa. A sociedade Europeia mudou um pouco, pelo menos
superficialmente, mas seu domínio sobre os não-Europeus continuou
como antes. Você pode ver o que a Revolução Americana de 1776
causou aos Índios Americanos. É a mesma velha ladainha. Ladainha.
O
Marxismo Revolucionário, como outras formas na sociedade industrial,
almeja "racionalizar" todos os povos em direção à
indústria – indústria máxima, máxima produção. Esta é uma
doutrina que despreza a tradição espiritual dos Índios Americanos,
nossas culturas, nossos jeitos de viver. O próprio Marx nós chamou
de “pré-capitalistas” e “primitivos”. Pré-capitalista
significa simplesmente que, em sua visão, nós eventualmente iríamos
descobrir o capitalismo e nos tornar capitalistas; nós temos sempre
sido economicamente atrasados nos termos Marxistas. A única maneira
pela qual o povo Indígena Americano poderia participar na revolução
Marxista seria unindo-se ao sistema industrial, tornarem-se
trabalhadores de fábricas, ou “proletários”, como Marx os
chamou. O homem estava bem certo sobre o fato de que sua revolução
apenas poderia ocorrer através da luta do proletariado, que a
existência de um sistema industrial de massa é a pré-condição
para uma sociedade Marxista de sucesso.
Eu
penso que existe um problema com a linguagem aqui. Cristãos,
capitalistas, marxistas. Todos eles foram revolucionários em suas
próprias mentes, mas nenhum deles realmente promoveu uma revolução.
O quê eles realmente queriam era continuação. Eles fazem o que
eles fazem a fim de que a cultura Europeia continua e se desenvolva
de acordo com suas necessidades.
Então,
para que todos nós realmente unamos nossas forças com o Marxismo,
nós Índios Americanos devemos aceitas o sacrifício nacional de
nossa terra natal; nós devemos cometer suicídio cultural e nos
tornarmos industrializados e Europeizados.
Neste
ponto, eu tenho que parar e perguntar a mim mesmo se eu não estou
sendo muito duro. O Marxismo tem uma boa história. Esta história
bear out minhas observações? Eu olho para o processo de
industrialização na União Soviética desde 1920 e eu vejo que
aqueles Marxistas fizeram o que levou 300 anos para a Revolução
Industrial Inglesa realizar; e o Marxismo realizou em 60 anos. Eu
vejo que o território da USSR possuia um número de povos tribais e
que eles foram esmagados para dar caminho para as fábricas. Os
Soviéticos se referem a isto como “A Questão Nacional”, a
questão se os povos tribais tem o direito de existir como povo; e
eles decidiram que os povos tribais eram um sacrifício aceitável
para as necessidades industriais. Eu olho para e China e vejo a mesma
situação. Eu olho para o Vietnam e vejo Marxistas impondo uma ordem
industrial e acabando com as raízes dos povos indígenas tribais
montanheses.
I
ouço influentes cientistas Soviéticos dizendo que quando o urânio
estiver exaurido, outras alternativas serão encontradas. Eu vejo
Vietnamitas invadindo plantas de energia nuclear abandonadas pelo
exército dos Estados Unidos. Eles a desmontaram e destruíram? Não,
eles as estão usando. Eu vejo a China explodindo bombas nucleares,
desenvolvendo reatores nucleares, e preparando um programa espacial a
fim de colonizar e explorar planetas da mesma maneira que os Europeus
colonizaram e exploraram este hemisfério. É a mesma velha ladainha,
mas talvez com maior velocidade desta vez.
Os
argumentos dos cientistas Soviéticos é muito interessante. Eles
sabem qual será esta fonte de energia alternativa? Não, eles
simplesmente tem fé. A ciência encontrará um caminho. Eu ouço
Marxistas revolucionários dizendo que a destruição do ambiente,
poluição e radiação serão todos controlados. E eu os vejo agindo
de acordo com suas palavras. Eles sabem como estas condições serão
controladas? Não, eles simplesmente tem fé. A ciência encontrará
um caminho. A industrialização é boa e necessária. Como eles
sabem disto? Fé. A ciência encontrará um caminho. Fé deste tipo
sempre foi conhecida na Europa como religião. A ciência se tornou a
nova religião Europeia para capitalistas e Marxistas; eles são
verdadeiramente inseparáveis; eles são parte e parcela da mesma
cultura. Portanto, em ambas teorias e práticas, o Marxismo exige que
povos não-Europeus desistam de seus valores de suas tradições, de
sua existência cultural completamente. Nós todos nos tornaremos
viciados em ciência industrializada em uma sociedade Marxista.
Eu
não acredito que o capitalismo em si seja realmente responsável
pela situação na qual os Índios Americanos tem sido declarado um
sacrifício nacional. Não, esta é a tradição Europeia; a cultura
Europeia em si é responsável. O Marxismo é apenas a continuação
mais recente desta tradição, não é uma solução para isto.
Aliar-se ao Marxismo e se aliar com as mesmas forças que nos
declararam um custo aceitável.
Existe
outro caminho. Existe o caminho tradicional dos Lakota e os caminhos
dos povos Indígenas Americanos. Este é o caminho que sabe que os
humanos não tem o direito de degradar a Mãe Terra, que existem
forças além de qualquer coisa que a mente Europeia tenha concebido,
que os humanos devem estar em harmonia com todas as relações ou as
relações irão eventualmente eliminar a desarmonia. A ênfase torta
nos humanos pelos humanos – a arrogância Europeia de agir como se
eles estivessem além da natureza de tudo como coisas relacionadas –
pode apenas resultar na total desarmonia e um reajuste que reduzirá
o número de humanos arrogantes, dando-lhes o gosto desta realidade
além de sua compreensão ou controle e restaure a harmonia. Não é
necessário uma teoria revolucionária para que isto aconteça; isto
está além do controle humano. Os povos naturais deste planeta sabem
disto e portanto eles não teorizam sobre isto. Teoria é uma
abstração; nosso conhecimento é real.
Distilada
em seus termos básicos, a fé Europeia – incluindo a nova fé na
ciência – é equivalente à crença de que o homem é Deus. A
Europa sempre procurou um Messias, seja este o homem Jesus Cristo ou
o homem Karl Marx ou o homem Albert Einstein. Índios Americanos
sabem que isto é totalmente absurdo. Os humanos são as criaturas
mais frágeis de todas, tão fracas que outras criaturas estão
dispostas a desistir de sua própria vida para que nós possamos
viver. Os Humanos são capazes de sobreviver apenas através do
exercício da racionalidade pois eles não possuem as habilidades de
outras criaturas para obter comida através do uso de garras e
presas.
Mas
a racionalidade é uma maldição se ela pode fazer com que os
humanos esqueçam da ordem natural das coisas que outras criaturas
não esquecem. Um lobo nunca se esquece de seu lugar na ordem
natural. Índios Americanos podem se esquecer. Europeus quase sempre
se esquecem. Nós oramos em agradecimento ao cervo, por nossas
relações, por nos permitir comer sua carne; Europeus simplesmente
comem a carne como se fosse seu direito e consideram o cervo um ser
inferior. Afinal, Europeus se consideram à semelhança de deus em
seu racionalismo e ciência. Deus é o Ser Supremo; tudo mais deve
ser inferior.
Toda
a tradição Europeia, incluindo o Marxismo, tem conspirado para
desafiar a ordem natural das coisas. A Mãe Terra tem sido abusada,
poderes tem sido abusados, e isto não continuará para sempre.
Nenhuma teoria é capaz de alterar este simples fato. A Mãe Terra
vai retaliar, o meio ambiente todo vai retaliar, e os abusadores
serão eliminados. Todas as coisas compõe um círculo perfeito, que
volta ao ponto onde começou. Isto é revolução. E esta é uma
profecia do meu povo, do povo Hopi e de outros povos.
Os
Índios Americanos tem tentato explicar isto para os Europeus por
séculos. Mas, como eu disse no antes, os Europeus tem provado que
são incapazes de ouvir. A ordem natural vencerá, e os infratores
vão morrer, assim como o cervo morre quando ele fere a harmonia ao
procriar demais em uma certa região. É apenas uma questão de tempo
até que a chamada "catástrofe de proporções globais"
pelos Europeus aconteça. Este é o papel dos povos Indígenas
Americanos, o papel de todas os seres naturais, sobreviver. Uma parte
de nossa sobrevivência é resistir. Nós resistimos não para
derrubar um governo ou para tomar o poder político, mas porque é
algo natural resistir à exterminação, sobreviver. Nós não
queremos ter poder sobre as instituições dos brancos; nós queremos
que as instituições dos brancos desapareçam. Isto é revolução.
Os
Índios Americanos ainda estão em contato com essas realidades –
as profecias, as tradições de nossos ancestrais. Nós aprendemos de
nossos anciãos, da natureza, dos poderes. E quando a catástrofe
terminar, os Índios Americanos ainda estarão aqui para habitar o
hemisfério. Eu não me importo que seja apenas um punhado de pessoas
vivendo no alto dos Andes. Os povos Indígenas Americanosvão
sobreviver; a harmonia será reestabelecida. Isso é revolução.
Neste
ponto, talvez, Eu precise ser mais claro sobre outra questão, que já
deveria estar claro a partir do que eu já disse. Mas a confusão
nasce facilmente nos dias atuais, portanto eu quero reforçar este
ponto. Quando eu uso o termo Europeu, Eu não estou me referindo à
cor da pela ou a uma estrutura genética em particular. Eu estou me
referindo a uma estrutura de pensamento, a uma visão de mundo que é
um produto do desenvolvimento da cultura Europeia. Os povos não são
geneticamente codificados para sustentar esta perspectiva; eles são
aculturados para sustentá-la. O mesmo é verdadeiro para os Índios
Americanos ou para os membros de qualquer cultura.
É
possível para um Índio Americano compartilhar valores Europeus, uma
visão de mundo Europeia. Nós temos um termo para estas pessoas; nós
os chamamos de “maçãs” - vermelhos por fora (genética) e
brancos por dentro (seus valores). Outros grupos tem termos
semelhantes: os Negros tem seus "oreos"; Hispânicos tem
"Coconuts" e assim por diante. E, como eu disse antes,
existem excessões para o padrão branco: pessoas que são brancas
por fora, mas não são brancas por dentro. Eu não estou certo sobre
que termo eu deveria usar em relação a eles a não ser "seres
humanos".
O
que eu estou expondo aqui não é uma proposição racial, mas uma
proposição cultural. Aqueles que recentemente tem advogado a favor
e defendido as realidades da cultura Europeia e seu industrialismo
são meus inimigos. Aqueles que resistem a isto, que lutam contra
isto, são meus aliados, os aliados do povo Indígena Americano. E eu
não dou a mínima para qual seja a cor de sua pele. Caucasiano é a
palavra branca para a raça branca: Europeus é a perspectiva à qual
eu me oponho.
Os
Vietnamitas Comunistas não são exatamente o que se considera um
Caucasiano geneticamente falando, mas agora eles estão funcionando
como Europeus mentais. O mesmo é verdade para os Chineses
Comunistas, para os Japoneses capitalistas ou para os Católicos
Bantu ou Peter "MacDollar" abaixo na Reserva Navajo ou
Dickie Wilson acima na Pine Ridge. Não existe nenhum racismo
envolvido nisto, apenas um reconhecimento da mente e espírito que
compõe uma cultura.
Em
termos Marxistas eu suponho que eu seja um "nacionalista
cultural". Eu trabalho primeiramente com meu povo, o povo
tradicional Lakota, porque nós comungamos de uma visão de mundo em
comum e compartilhamos de uma luta direta. Além disto, Eu trabalho
com outros povos Indígenas Americanos tradicionais, novamente devido
a uma certa comunhão na visão de mundo e na forma de luta. E além
disto, eu trabalho com qualquer um que tenha vivido a opressão
colonial da Europa e que resista a seu absolutismo cultural e
industrial. Evidentemente, isto inclui Caucasianos geneticamente
falando que lutam para resistir ao padrão dominante da cultura
Europeia. Os Irlandeses e os Bascos me vem imediatamente à mente,
mas existem muitos outros.
Eu
trabalho primeiramente com meu próprio povo, com minha própria
comunidade. Outros povos que sustentam perspectivas não-Europeias
deveriam fazer o mesmo. Eu acredito no ditado, "Acredita na
visão de seu irmão", embora eu gosto de acrescentar irmãs
também na questão. Eu confio na comunidade e na visão
culturalmente baseada de todas as raças que resistem naturalmente à
industrialização e à extinção do humano. É claro que indivíduos
brancos podem compartilhar disto, dado apenas que eles tenham
alcançado a consciência de que a continuidade dos imperativos
industriais Europeus não são um ponto de vista, mas o suicídio da
espécie. O Branco é uma das cores sagradas para o povo Lakota –
vermelho, amarelo, branco e preto. As quatro direções. As quatro
estações. Os quatro períodos de vida e emadurecimento. As quatro
raças da humanidade. Misturando o vermelho, o amarelo, o branco e o
preto nós temos o marrom, a cor da quinta raça. Esta é a ordem
natural das coisas. E me parece natural portanto que todas as raças,
cada qual com seu princípio, identidade e mensagem especiais.
Mas
existe um comportamento peculiar entre a maioria dos Caucasianos.
Assim que eu me tornei um crítico da Europe e de seu impacto sobre
outras culturas, eles se tornaram defensivos. Eles começaram a se
defender. Mas eu não os estou atacando pessoalmente; Eu estou
atacando a Europa. Ao personalizar minhas observações sobre a
Europa eles estão personalizando a cultura Europeia, identificando a
si mesmos com ela. Ao se defenderam neste contexto, eles estão em
última instância defendendo a cultura da morte. Existe uma confusão
que dever ser superada, e deve ser superada rapidamente. Nenhum de
nós tem energia para desperdiçar em lutas falsas.
Os
Caucasianos tem uma visão mais positiva para oferecer à humanidade
do que a cultura Europeia. Eu acredito nisto. Mas para que os
Caucasianos tenham esta visão é necessário que eles saiam da
cultura Europeia – se alinhem ao resto da humanidade – para ver o
que a Europa é e o que ela tem faz.
Agarrar-se
ao capitalismo e ao Marxismo e todos os outros "ismos" é
simplesmente permanecer dentro da cultura Europeia. Não tem como
evitar este fato básico. Como um fato, isto determina uma escolha.
Entender que a escolha está baseada na cultura, não na raça.
Entender que escolher a cultura e a industrialização Europeia é
escolher ser meu inimigo. E entender que esta escolha é sua, não
minha.
Isto
me leva de volta a me dirigir àqueles Índios Americanos que estão
vagando por universidades, favelas nas cidades, e outras instituições
Europeias. Se vocês estão aí para resistir ao opressor de acordo
com seus costumes tradicionais, que assim seja. Eu não sei como você
consegue combinar as duas coisas, mas talvez você consiga ter
sucesso. Mas mantenha o seu senso de realidade. Esteja atento a vir a
acreditar que o mundo branco agora oferece soluções para os
problemas que nos atinge. Esteja atento, também, de não permitir
que as palavras dos povos nativos sejam usados para vantagem de
nossos inimigos. A Europa inventou a prática de aproveitar as
palavras para si mesmos. Basta que vocês olhem para os tratados
entre Índios Americanos e vários governos Europeus para saber que
isto é verdade. Desenvolva sua força a partir do que você é.
Uma
cultura que regularmente confunde revolta com resistência, não tem
nada útil para te ensinar nem nada a te oferecer como forma de
viver. Os Europeus tem já há um longo tempo perdido todo o contato
com a realidade, se é que alguma vez eles estabeleceram algum
contato com o que vocês são como Índios Americanos.
Portanto,
para concluir este discurso, eu quero deixar bem claro que direcionar
qualquer um ao Marxismo é a última coisa que passa pela minha
mente. O Marxismo é tão alienígena à minha cultura quanto o
capitalismo e o Cristianismo são. De fato, eu posso dizer que eu não
penso que eu esteja tentando conduzir qualquer pessoa em direção a
qualquer coisa. Até um certo ponto eu tentei ser um “líder",
no sentido que a mídia branca gosta de usar este termo, Quando o
Movimento Indígena Americano era uma organização nova. Este é o
resultado de uma confusão que eu não tenho mais. Você não é
capaz de ser tudo para todos. Eu não me proponho a ser usado desta
forma por meus inimigos. Eu não sou um líder. Eu sou um membro da
comunidade Oglala Lakota. Isto é tudo o que eu quero e tudo o que eu
preciso ser. E eu estou completamente confortável com o que eu sou".
Texto original: http://theanarchistlibrary.org/library/russell-means-for-america-to-live-europe-must-die
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