Há algum tempo estou postando e comentando que está em curso um novo
golpe semelhante e duradouro ao que iniciou-se em 1964. É uma frase
simples e que provoca reflexão. Mas será verdadeira? Não estou
recorrendo à mesma estratégia da mídia manipuladora e dos
defensores acéfalos da elite medíocre e reacionária existente
em nosso país? Ou seja, não estou usando uma falácia poderosa para
convencer leitores menos aparelhados conceitualmente? Existe
realmente consistência crítica em minha afirmação?
Bem, como professor e estudioso de História, não posso me dar ao luxo de
garantir minha afirmação apenas baseado em minha pressuposta
experiência acadêmica e profissional. Portanto, me dispus a deixar
a preguiça de lado e comecei a ler a obra de Elio Gaspari sobre a
Ditadura Militar (seus quatro livros publicados até agora, A
Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada e a Ditadura Encurralada).
Comprei estes livros na época em que trabalhava na extinta Livraria Cultura
e tinha o privilégio de adquirir mais livros do que era capaz de ler
pois, sim, a leitura crítica exige esforço, o estudo sério exige
esforço intelectual. E vem daí a crítica aos comentaristas e
críticos sem consistência, sem formação e sem conteúdo. Repetir
frases feitas é fácil. Decorar versículos bíblicos e usá-los
como verdades absolutas é ainda mais fácil. Entender e compreender exige dedicação,
exige tempo, exige esforço.
Para minha satisfação, logo no primeiro volume, A
Ditadura Envergonhada – as ilusões armadas,
Elio Gaspari faz uma “Introdução” à sua extensa obra onde já se evidencia muito do que estou afirmando.
Não. Minha tarefa não se reduzirá à leitura de um único capítulo. Vou ler a obra toda. Se encontrar paradoxos ou
antagonismos, estou pronto a enfrentá-los, sem medo, sem preguiça.
Mas nesta pequena introdução (são apenas 20 páginas), Elio Gaspari destaca exatamente o aspecto de que comandar
uma ação não implica que o resultado esteja sob seu comando. Existir uma boa intenção ao se defender uma ideia não implica que
a realização desta ideia produza os efeitos esperados.
Assim, podemos aprender com um erro, ou repeti-lo até a morte. E o erro não
está apenas no grupo de pobres empregados que defendem a riqueza de
seus patrões. O erro está também em uma proposta de partido que se utiliza de concessões como
forma de barganha do poder para efetivar seus projetos. Junto a
forças maiores estão os interesses mesquinhos. No tabuleiro de
xadrez movimentam-se peões e rainhas, peças brancas e peças
pretas. E no tabuleiro da vida a diversidade das peças é tão
imensa quanto o número de pessoas que dela participam.
A diferença está basicamente na instituição utilizada para efetivar
o golpe nas diferentes épocas. Se em 1964 foi utilizado o poder
militar para garantir o golpe, nos dias atuais está sendo utilizado
o poder jurídico.
Enfim, não posso reproduzir aqui todas as vinte páginas da introdução da
obra, mas recortei alguns trechos que destacam a minha ideia. Se
alguém dispuser de tempo e disposição, poderá ler o capítulo
todo, até mesmo a obra toda, porque não?
(21) INTRODUÇÃO
...
(22) - Frota, nós não estamos mais nos entendendo. A sua administração no ministério não está seguindo o que combinamos. Além disso você é candidato a presidente e está em campanha. Eu não acho isso certo. Por isso preciso que você peça demissão.
(22) - Frota, nós não estamos mais nos entendendo. A sua administração no ministério não está seguindo o que combinamos. Além disso você é candidato a presidente e está em campanha. Eu não acho isso certo. Por isso preciso que você peça demissão.
- Eu não peço demissão – respondeu Frota.
- Bem, então vou demiti-lo. O cargo de ministro é meu, e não deposito
mais em você a confiança necessária para mantê-lo. Se você não
vai pedir demissão, vou exonerá-lo.
...
(33) No início da noite do dia 12 o presidente empossou o novo ministro
no palácio do Planalto, diante das principais autoridades do país.
Nessa cerimônia deu-se um rápido episódio. Durou apenas alguns
segundos, e, afora as pessoas nele envolvidas, ninguém o percebeu.
Logo que Bethlem assinou o termo de posse, o presidente da Câmara
dos Deputados, Marco Maciel, moveu-se na direção do general.
Geisel, que estava ao seu lado, supôs que o jovem deputado fosse
cumprimentar o ministro. Congelou a cena chamando Bethlem: “Ministro,
quero apresentá-lo ao presidente da Câmara”. Passaram-se anos sem
que Maciel desse importância ou buscasse explicação para a cena.
Para Geisel, tudo fora muito simples: “Não é o presidente da
Câmara quem se apresenta ao ministro (34) do Exército, mas o
ministro do Exército, um colaborador do presidente, que deve ser
apresentado ao presidente da Câmara”.
...
No dia 12 de outubro de 1977, com a demissão de Frota, dissolveu-se a
mais perversa das anomalias introduzidas pela ditadura na vida
política (35) brasileira, restabelecendo-se a autoridade
constitucional do presidente da República sobre as Forças Armadas.
Encerrou-se o ciclo aberto em 1964, no qual a figura do chefe do
governo se confundia com a de representante da vontade militar,
tornando-se ora seu delegado ora seu prisioneiro. A maioria dos
instrumentos jurídicos do regime ditatorial sobreviveria ainda por
alguns anos, mas a recuperação do poder republicano do presidente
significou a disponibilidade do caminho da redemocratização.
Paradoxalmente, essa restauração partiu não só de um presidente
militar, mas do mais marcial dos generais que ocuparam a Presidência.
Geisel restabeleceu o primado da Presidência por meio de uma crise
militar da qual manteve afastados os políticos, a imprensa e a
opinião pública. Podem-se contar nos dedos de uma só mão os civis
que tiveram algum tipo de relevo na jornada de 12 de outubro e 1977.
Nesse paradoxo, contudo, não está mais uma das charadas da vida
política do país, e sim a solução do enigma que acompanha tanto
os mecanismos pelos quais os militarem tomam o poder como aqueles
pelos quais o deixam.
...
Desde 1968, quando através da vigência do Ato Institucional nº 5 o
Brasil entrara no mais longo período ditatorial de sua história,
dois presidentes prometeram restaurar as franquias democráticas.
Geisel, o único a não fazer essa promessa, acabou com a ditadura.
Entre 1974, ao assumir o governo, e 1979, ao deixá-lo, transformou
uma Presidência inerte, entregue a um colegiado de superministros,
num governo imperial. Converteu uma ditadura amorfa, sujeita a
períodos de anarquia militar, num regime de poder pessoal, e quando
consolidou esse poder – ao longo de um processo que culmina no dia
12 de outubro de 1977 – desmantelou o regime. Quando assumiu, havia
uma ditadura sem ditador. No fim de seu governo, havia um ditador sem
ditadura. No dia 31 de dezembro de 1978, 74 dias antes da conclusão
de seu mandato, acabou-se o Ato Institucional (36) nº 5, o
instrumento jurídico que vigorava por dez anos, por meio do qual o
presidente podia fechar o Congresso, cassar mandatos parlamentares e
governar por decretos uma sociedade onde não havia direito a habeas
corpus em casos de crimes contra a segurança nacional. Antes,
acabara com a censura à imprensa e com a tortura de presos
políticos, pilares dor regime desde 1968.
O objetivo desta obra é contar por que e como Geisel e Golbery, dois
militares que estiveram na origem da conspiração de 1964 e no
centro do primeiro governo constituído após sua vitória,
retornaram ao poder dez anos depois, com o propósito de desmontar a
ditadura. Geisel era um moralista, defensor convicto de um Executivo
forte, adversário do sufrágio universal como forma de escolha de
governantes e crítico acerbo do Parlamento como instituição
eficaz. Golbery, que em 1956 – em pleno governo constitucional –
pedia a criação de um Serviço Nacional de Informações, fundou-o
em 64 e dirigiu-o até 67. Conviveu com ele a partir de 1974, ajudou
a transformar o seu chefe, general João Baptista Figueiredo, em
presidente da República e, em 81, chamou sua criatura de “monstro”.
Deixou o governo amaldiçoando o que se denominava Comunidade de
Informações: “Vocês pensam que vão controlar o país cometendo
crimes e encobrindo seus autores, mas estão muito enganados. Vão
ser postos daqui para fora, com um pé na bunda”, disse Golbery ao
general Octavio Aguiar de Medeiros, chefe do SNI, no dia em que saiu
do palácio do Planalto, em agosto de 1981.
...
(37) O Sacerdote e o Feiticeiro acreditavam no Brasil e nele mandaram como poucas pessoas o fizeram.
Suas trajetórias ensinam como é fácil chegar a uma ditadura e como
é difícil sair dela.
(38) … No poder, os generais raramente contam as maquinações políticas
de que participam. …
O mais caudaloso dos generais que tomaram o poder no século XX,
Charles de Gaulle, escreveu cinco volumes de memórias… Quando se
trata de procurar os mecanismos políticos a que recorreu para
desmontar a associação dos militares com a extrema direita, a
repressão política e o colonialismo na Argélia, tudo somado não
junta dez páginas.
É possível arriscar uma explicação para esse fenômeno. Os militares
procuram preservar a própria mística segundo a qual, em quase todos
os idiomas, as Forças Armadas, por suas virtudes, colocam-se acima
dos partidos e da política civis. …
Se há uma grande diferença entre a política dos civis e a dos
militares, ela está no fato de que esta envolve uma corporação
burocrática fechada que precisa acima de tudo preservar alguma forma
de coesão. … (39) Prefeitos e médicos podem brigar abertamente.
Ambos podem mudar de partido, de hospital e, até mesmo, deixar a
política ou a medicina. Os militares não podem fazer isso com a
mesma facilidade, pois um capitão-de-fragata não pode trocar de
Marinha nem um major de cavalaria, de Exército. Permanecendo na
corporação, convivem com a mesma geração de colegas, respeitando
praticamente a mesma hierarquia ao longo de todas as suas vidas. …
Jamais se esquecem, por exemplo, os apelidos da juventude, ganhos no
tempo das escolas militares. Para um aspirante dos anos 30, o Brasil
foi presidido de 1964 a 1985 por Tamanco, Português, Milito, Alemão e Figa.
O silêncio dos generais foi compensado pela utilização maciça de
conceitos teóricos. Com isso, frequentemente misturaram-se ideias
brilhantes e preconceitos, dando-se força de dogma a algumas
racionalizações que, no máximo, seriam bons instrumentos de
especulação. Para explicar a brutalização da política,
recorreu-se demais ao que se chama de Doutrina da Segurança Nacional
ou, na sua denominação crítica, Ideologia da Segurança Nacional. …
...
(41) Para quem quiser cortar caminho na busca do motivo por que Geisel e
Golbery desmontaram a ditadura, a resposta é simples: porque o
regime militar, outorgando-se o monopólio da ordem, era uma grande
bagunça.
Como ela tomou conta do país e como a desmancharam é uma história mais
comprida. Começa na noite de 30 de março de 1964, quando a
democracia brasileira tomou o caminho da breca.
Gaspari, Elio. A Ditadura Envergonhada – as ilusões armadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.