sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Ayahuasca, uma revolução ancestral. Parte 2.


Neste texto vamos apresentar uma visão biológica da Ayahuasca, seus elementos químicos e seus efeitos. A Ayahuasca é preparada principalmente a partir do cipó Banisteriopsis caapi (o Mariri) e da folha de Psycotria viridis (a Chacrona).

O cipó Banisteriopsis caapi, da família Malpighiaceae, contém alcalóides β-carbolinas, como harmina, harmalina e tetra-hidro-harmalina, que atuam como inibidores da MAO (monoaminoxidase). A concentração desses alcaloides no cipó varia de 0,05% a 1,95%. A Psycotria viridis, da família Rubiaceae, possui N,N-dimetiltriptamina (DMT), um alcaloide derivado indólico que age nos receptores da serotonina, em concentrações que variam de 0,1% a 0,66%. Em 200 mL de Ayahuasca, as análises quantitativas indicam aproximadamente 30 mg de harmina, 10 mg de tetra-hidro-harmalina e 25 mg de DMT.

Para compreender o mecanismo de ação da Ayahuasca, é fundamental entender o papel da serotonina (5-hidroxitriptamina ou 5-HT). Essa substância distribui-se amplamente nos tecidos animais, sendo mais de 90% encontrada nas células enterocromafins do trato gastrointestinal. No sangue, a serotonina está presente nas plaquetas, e no cérebro, nos núcleos da rafe do tronco cerebral, onde neurônios triptaminérgicos a sintetizam, armazenam e liberam como neurotransmissor. A serotonina cerebral está envolvida em funções como sono, humor, regulação da temperatura, percepção da dor e regulação da pressão arterial, e pode estar ligada a condições patológicas como depressão, ansiedade e enxaqueca. Ela é metabolizada pela MAO em 5-hidroxindol acetaldeído. A serotonina exerce suas ações mediadas por receptores na membrana celular, como o 5-HT1a (nos núcleos da rafe e hipocampo, diminuindo o AMP cíclico), o 5-HT1b (no globo pálido e gânglios da base, diminuindo o AMPc), o 5-HT1c (no coroide e hipocampo, aumentando o IP3), e o 5-HT2 (nas plaquetas, músculo liso, córtex cerebral e fundo do estômago, aumentando o IP3). O aumento de IP3 leva ao aumento da secreção e motilidade em órgãos e tecidos. Os principais efeitos da serotonina no sistema cardiovascular incluem contração do músculo liso e potente vasoconstrição (exceto em músculos esqueléticos e no coração), além de causar vasodilatação e agregação plaquetária no coração. No trato gastrointestinal, causa contração da musculatura lisa, aumentando o tônus e facilitando o peristaltismo, e o excesso de serotonina em tumores associa-se à diarreia intensa. Na respiração, tem pequena ação estimulante do músculo liso bronquiolar. No sistema nervoso, é um potente estimulador das terminações nervosas sensoriais para dor e prurido, e ativadora das terminações quimiossensíveis no leito vascular coronário, associada à bradicardia e hipotensão.

O DMT é um potente alucinógeno quando administrado por via parenteral em doses de 25 mg, agindo como agonista dos receptores 5-HT1a, 1b, 1d, 5-HT2a e 2c. No entanto, por via oral, é inativado pela enzima MAO intestinal e hepática. As β-carbolinas, por sua vez, possuem propriedades alucinógenas e contribuem para a atividade da Ayahuasca. Sendo inibidoras da MAO, as β-carbolinas impedem a desaminação intestinal do DMT, permitindo que ele chegue ao cérebro mesmo após ingestão oral. Além disso, elas aumentam os níveis de serotonina, dopamina, norepinefrina e epinefrina no cérebro. Os efeitos sedativos de altas doses de β-carbolinas resultam do bloqueio da desaminação da serotonina. A tetra-hidro-harmina (THH), a segunda β-carbolina mais abundante na Ayahuasca, atua como um fraco inibidor da recaptação do receptor 5-HT e inibidor da MAO, podendo prolongar a meia-vida do DMT ao bloquear sua recaptação intraneuronal. A THH também pode bloquear a recaptação neuronal da serotonina, elevando os níveis de 5-HT na fenda sináptica, e pode atenuar os efeitos da ingestão oral de DMT por competir com os sítios receptores pós-sinápticos. A ação da bebida se deve à interação das β-carbolinas com o DMT, que juntas potencializam as propriedades alucinógenas, considerando que as β-carbolinas aumentam as concentrações de DMT.

Os efeitos da Ayahuasca aparecem em aproximadamente 30 a 45 minutos e podem durar até quatro horas. Os efeitos subjetivos incluem visões de imagens com os olhos fechados, delírios semelhantes a sonhos e sensação de vigilância e estimulação. É comum a ocorrência de hipertensão, palpitação, taquicardia, tremores, midríase, euforia e excitação agressiva. Náuseas, vômitos e diarreia são frequentes e podem estar associados à ação no receptor 5-HT2. Algumas β-carbolinas foram identificadas como causadoras de efeitos co-mutagênicos, possivelmente por interagirem com ácidos nucleicos. Por serem inibidoras da MAO, essas substâncias podem causar a síndrome serotoninérgica, uma patologia grave decorrente do excesso de serotonina. A "miração", uma ação alucinógena específica e frequente, caracteriza-se por visões de animais, "seres da floresta", divindades, demônios, sensação de voar, e a substituição do corpo pelo de outro ser, variando conforme a experiência individual. A Ayahuasca pode induzir ilusões visuais, auditivas, olfativas e dos demais sentidos.

Os "estados alterados de consciência" provocados pelo chá podem ser vistos como alterações da percepção, cognição, volição e afetividade. A avaliação da intensidade dos efeitos da Ayahuasca, usando a Escala de Mensuração dos Alucinógenos (HRS) após a ingestão de cerca de 150 mL do chá, mostrou resultados semelhantes a uma dose intravenosa de 0,1 a 0,2 mg/kg de DMT nos espectros de intensidade, afeto, cognição e volição. Na percepção, foi comparável a 0,1 mg/kg de DMT, e na sinestesia, inferior à menor dose de DMT intravenosa (0,05 mg/kg). A maioria dos alucinógenos que atuam no receptor 5-HT leva ao fenômeno de tolerância, que exige doses maiores para os mesmos efeitos ou diminui o efeito inicial com a mesma dose. Contudo, um estudo de 1997 demonstrou que o DMT, quando usado isoladamente, não causou desenvolvimento de tolerância crescente após doses subsequentes.


Até aqui, o texto foi baseado no trabalho de Costa, M. C. M.; Figueiredo, M. C.; Cazenave, S. O. S. Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico. Revista de Psiquiatria Clínica 32 (6); 310-318, 2005. O texto original foi adaptado por uma IA. Tomei a liberdade de realizar esse procedimento para destacar que os dados científicos não precisam de interpretação ou de tradução, afinal, um charuto é apenas um charuto. O que precisamos compreender é que a base em que esses elementos químicos irão atuar é um ser humano singular, portanto, cada efeito, em cada corpo, em determinado momento, também é singular.

Na história da humanidade, com o movimento chamado Iluminismo, se determinou a separação entre ciência e religião, entre corpo e espírito. Porém, depois de Einstein e Freud, podemos afirmar que esta separação é uma falácia. Ou, tudo é energia.

“Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade e nos alienamos desse organismo de que somos parte, a Terra, passando a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo que exista algo que não seja natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.” (Airton Krenak, O amanhã não está a venda.)

Assim como palavras combinadas e articuladas formam frases e textos que, como um todo transmitem um significado complexo que transcende a soma dos significados individuais das palavras, DMT, MAO, harmalina, alcaloides, serotonina, são elementos que, combinados e articulados no todo humano, transcendem a soma de seus efeitos.

Ayahuasca, uma revolução ancestral. Parte 1.




A história sobre o chá da Ayahuasca remonta desde o Império Inca e vem sendo utilizado milenarmente por indígenas que vivem na região da Amazônia como prática espiritual e ritual. Com a chegada de outros povos ao Brasil, não-indígenas passaram a fazer uso do chá. Essa utilização vem aumentando desde a liberação do uso da Ayahuasca para fins religiosos no Brasil. A ação do chá deve-se à presença de alcaloides nas plantas utilizadas na sua preparação: o cipó Banisteriopsis caapi, chamado de Mariri; e as folhas do arbusto Psycotria viridis, chamado de Chacrona.

A palavra Ayahuasca é de origem indígena. Aya quer dizer “pessoa morta, alma espírito” e waska significa “corda, liana, cipó ou vinho”. Assim a tradução, para o português, seria algo como “corda dos mortos” ou “vinho dos mortos”. No Peru, encontrou-se o seguinte significado: “soga de los muertos”.

Diversos povos indígenas, que vivem desde a região da Amazônia até o sul dos Andes, fazem uso da Ayahuasca, especificamente, é utilizada por cerca de 72 tribos distintas da Amazônia, dentre elas destacam-se os Kaxinawá, Yaminawa, Sharanawa, Ashaninka, Airo-pai, Baranara, dentre muitas outras. Para estas civilizações, as manifestações religiosas ocorrem na forma de mitos ligados à realidade do meio que os cercam. Para os Kaxinawá a natureza possui alma, vontade e ordem própria, revelando que o espírito da mesma é uma energia vital responsável por todo o fenômeno em qualquer parte do mundo. Assim, a natureza não está fora do humano, o humano está dentro da natureza. Para os Kaxinawá, a natureza não existe sem ser permeada pelo espiritual.

A ingestão da bebida seria, ainda, fundamental para o destino do indígena depois da sua morte. Somente com o chá, o ser humano poderia perceber a separação entre o espírito e o corpo. Sem isso o corpo ficaria louco e não conseguiria alcançar a “aldeia celeste”, que seria o destino final do espírito. E, também, somente com o chá se pode adquirir a força necessária para enfrentar “a luta espiritual com a onça gigante e não ser devorado por esta, que está no meio do caminho para a aldeia celeste”. Entre os Ashaninka, a Ayahuasca significa virtude religiosa e moral, sendo seu uso ligado a um dever, cuja principal característica é a eternidade. Dentre as culturas indígenas, as visões causadas pelas plantas são consideradas verdades absolutas, e mais, as visões seriam a verdade. Para estas civilizações, a vida cotidiana seria uma ilusão ou um período transitório. O verdadeiro aspecto da vida na Terra é aquele contemplado nas visões sob o efeito do chá. A planta revelaria as coisas como elas realmente são, revelaria a essência dos seres, e neste caso todos seriam iguais, todos com aspecto humano, mas não são humanos e sim seres da natureza que vivem em um espaço próprio, onde eles vêem tudo e sabem de tudo.

Aqui, destaco Teilhard de Chardin, um padre francês que faleceu em Nova Iorque em 1955, a quem é atribuída a frase: “somos seres espirituais vivendo uma experiência humana”. Uma pessoa com uma ancestralidade completamente diversa de qualquer indígena sul americano, mas com a mesma percepção.

A Ayahuasca é considerada, ainda, como sendo a fonte de todo o conhecimento necessário para se viver corretamente em todos os aspectos (pessoal, moral, social, espiritual, ancestral, com os animais, plantas e seres sobrenaturais). Por fim, temos os efeitos terapêuticos da planta que é ao mesmo tempo aquilo que permite o diagnóstico, bem como a cura para inúmeros males.

O importante de todo este prólogo é que esses elementos se fazem presentes nos diversos grupos não-indígenas que utilizam o consumo da Ayahuasca em seus rituais, pois esses elementos são efeitos produzidos pelo consumo do chá.

Eu, pessoalmente, faço uso da Ayahuasca há mais de 7 anos, bebendo o chá, geralmente, a cada 15 dias. O que eu posso dizer, da minha experiência pessoal, é que os elementos descritos nas pesquisas que foram fonte desse texto estão também presentes em minha experiência subjetiva.

Encerro deixando a reflexão: os efeitos produzidos pelo chá são determinados pelo ritual? Ou são os efeitos do chá na psique humana que determinam os rituais?

No próximo texto pretendo trazer algumas informações de estudos sobre a ação dos alcaloides encontrados na Ayahuasca.


Fontes:

Costa, M. C. M.; Figueiredo, M. C.; Cazenave, S. O. S. Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico. Revista de Psiquiatria Clínica 32 (6); 310-318, 2005.

Labate, B.C.; Araújo, W.S. - O uso Ritual da Ayahuasca. Mercado das Letras. FAPESP, São Paulo, 2002.


Um grito fraco para uma samambaia surda


    Assistir ao espetáculo Filoctetes em Lemnos com Vinícius Torres Machado nos impõe um ato de persistência. A cena descrita no título é um bom momento para definir a peça e é também um bom momento para se levantar e sair da sala de espetáculo.

    Eu consegui, por teimosia, continuar sentado assistindo o transcorrer das cenas até o show bizarro e os agradecimentos, talvez um momento final do espetáculo, a partir do qual os guerreiros podem continuar sua odisseia. Mas não. Vinícius volta à cena, se senta, e espera, ele ainda espera seu resgate. A partir deste momento muitas pessoas fazem a leitura de fim, se levantam, saem da sala, sem aplausos, o ator continua em cena, continua sem dizer.

    Imagino o Vinícius ainda lá, sentado, esperando, as portas do teatro se fecharam, a equipe de manutenção organizou o espaço, os técnicos fizeram suas revisões, e ele permaneceu lá, sentado, esperando. Deve estar lá, agora. Nós sabemos que não.

    Filoctetes em Lemnos com Vinicius Torres Machado é um espetáculo que, quanto menos eu gosto, mais eu admiro.

    Como espectador, na escuta flutuante adequada a um espectador, eu saí da sala, na realidade, um galpão, incomodado, com vontade de preencher aquele vazio de palavras encobertas por camadas de signos elaborados por uma masturbação intelectual típica dos acadêmicos do Teatro.

    E, no meu direito a elaborar as minhas próprias masturbações intelectuais, atingi meu orgasmo.

    A frase que recebemos ao entrar no espaço nos informa sobre a espera de 10 anos, o período que durou a Guerra de Tróia, até que os gregos, através do oráculo Heleno; um oráculo de Tróia, capturado pelos gregos; recebem a informação de que, para vencer a guerra, eles precisam do arco de Héracles.

    Mas o arco de Héracles está com o Filoctetes, que os gregos abandonaram em uma ilha deserta na viagem até Tróia, pois ele havia sido picado por uma cobra e gritava muito com as dores causadas por esse acontecimento.

    E o cavalo? Para que serviria o cavalo se os gregos não tivessem resgatado o FIloctetes com seu arco?

    Vejam que a narrativa é complexa. Alcançar essa narrativa de forma cênica, sem palavras, não é uma tarefa simples para um relês expectador. E pior. Para que me serve essa narrativa no ano 2025 de nosso senhor Jesus Cristo?

    Aí me vem à mente outra guerra em curso, não uma guerra, um genocídio, o Estado de Israel matando o povo na Faixa de Gaza. Esse genocídio vai completar dois anos em 7 de outubro. Será que teremos que esperar 10 anos, até que algum Heleno nos diga para resgatar FIloctetes da ilha e acabar com esse massacre?

    Talvez. Enquanto isso nós seremos essa plateia apática, como a samambaia, da cena título desse texto.. Podemos sair da sala insatisfeitos, incomodados, iremos comer uma pizza na 1900, discutir o belo projeto de iluminação do espetáculo e seus enigmas simbólicos transcendentais e continuar contando os corpos, os corpos de mulheres e crianças palestinas, os corpos de jovens negros nas periferias do Brasil. Não nos faltam fontes e origens e opções de corpos para contar. Continuemos então, com tantos corpos para contar, esperando nosso resgate em nossas ilhas, cada um na sua.

    Cabe aqui trazer uma tradição da história do povo hebreu. Quando o Rei Davi estava em seu leito de morte, ele deu dois conselhos para seu filho, Salomão. O primeiro era que Salomão não deveria acreditar nos profetas. O segundo era que Salomão deveria matar seu meio-irmão, Adonias, filho primogênito de Davi, que teria direito ao trono. Portanto, no caso de Gaza, seguindo os princípios hebreus, o que Heleno disser não será ouvido, e o arco de Filoctetes não irá por um fim ao genocídio na Faixa de Gaza, pois o designío é matar o irmão que tem direito ao trono.

    Vejam só, quanta reflexão podemos extrair de um espetáculo que não disse nada.