domingo, 17 de julho de 2011

Tolstoi: Anarquista? Cristão!

Não pensem que abandonei meus estudos sobre Anarquia, muito pelo contrário, minhas ideias estão mais acraciadas do que nunca.

Quando falo sobre Clarice Lispector, não estou distante da anarquia. Clarice foi uma escritora que não se vinculou a qualquer tradição literária, embora muitos estudiosos tentem enquadrá-la através de suas críticas e análises. Eu prefiro sintetizar suas obras, acrescentar a elas minhas leituras e interpretações. Ao começar a tentar escrever um ensaio sobre ela encontrei mais de 430 trabalhos acadêmicos já “defendidos” no site da CAPES. Clarice foi analisada por estudiosos das mais diversas áreas, em seus aspectos não apenas literários, mas também filosóficos e místicos, ou qualquer outra faceta que se queira observar. Vale lembrar que o conto “O ovo e a galinha” foi apresentado pela própria autora no primeiro Congresso Mundial de Bruxaria. É preciso dizer algo mais?

Mas o assunto desta postagem é outro grande escritor: Leon Tolstoi.
Tolstoi é mundialmente famoso por seus romances: Guerra e Paz publicado em 1868 e Anna Karienina publicado em 1875. Mas vamos falar aqui do segundo período da vida deste escritor; após uma violenta crise espiritual pela qual passou ao completar 50 anos (1878) e que é apresentada no livro Minha Confissão de 1882. Poucas pessoas sabem sobre seus debates com filósofos e teólogos da época, e que é no meio do povo pobre que ele dá-se conta do que é na verdade a fé para essa gente; que a fé não é um assunto de conversas inconsequentes, mas uma questão vital, e é isso que provoca sua “conversão”.

O Reino de Deus está em Vós é considerada a obra máxima de Tolstoi deste período e lhe tomou três anos para completá-la (1890-1893), justamente no momento em que ele chegava ao cume de sua maturidade intelectual – 65 anos de idade. A dificuldade na execução desta obra não está apenas no tema abordado, mas também no fato de ter que andar por toda a parte organizando refeitórios populares para ajudar os pobres a vencer a terrível crise de 1891, o que mostra seu verdadeiro comprometimento com suas ideias.

Apesar de atualmente esta obra ser praticamente ignorada, logo após sua publicação ela foi traduzida nas principais línguas europeias e um de seus leitores mais notórios foi Gandhi, que leu o trabalho em inglês em 1894. Gandhi se encontrava então em uma crise de ceticismo e dúvida e, como ele mesmo conta; “a leitura do livro me curou do ceticismo e fez de mim um firme seguidor da ahimsa”.
A-himsa é o pensamento puro da Índia, inspirado pelo amor universal. Himsa significa querer matar, querer prejudicar. A-himsa é a renúncia de toda intenção de morte ou dano ocasionado pela violência. Gandhi leva este livro consigo para a prisão em 1908 e declara que Tolstoi era o “maior apóstolo da não-violência” e o homem “mais autêntico de seu tempo”.
Depois das primeiras reações contraditórias – aplausos de um lado e vetado pelo regime czarista, além de seu autor ter sido excomungado pela igreja ortodoxa, pois Tolstoi recusa radicalmente as ideias de Estado e de Igreja, considerando estas duas instituições como essencialmente opressoras do povo – a opinião pública internacional relegou esta obra ao esquecimento. Entre nós, mais que de esquecimento, devemos falar mesmo de falta de conhecimento, pois conhecemos apenas o Tolstoi romancista, contista ou novelista.

O que Tolstoi sustenta em todo o livro é a validade social do preceito de Cristo no Sermão da Montanha: “Não resistais ao mal” (Mateus 5:39). O sentido que Tolstoi defende é: não resistais ao mal com o mal, ou seja, não responder à violência com a violência, ele não aceita a máxima jurídica comumente aceita: vim vi repellere (repelir violência com violência). A violência jamais pode ser legitimada apelando para o direito de “legitima defesa”, porque a violência é sempre um mal, e não se pode responder ao mal com o mal, e isso vale tanto para o cristão como para um cidadão qualquer.

Mas também não se trata de o indivíduo permanecer passivo frente ao mal ou à violência, mas de responder a ela pela não-violência: a bondade, a mansidão e a caridade. Os preceitos do Sermão da Montanha, no caso a não-violência, são realmente imperativos. Não se trata de leis morais ou regras jurídicas fixas que devam ser aplicadas mecanicamente. São indicações de um ideal, apelos éticos, “via de perfeição infinita”. São exigências morais absolutas, que têm a força de pôr em movimento a relatividade do agir humano concreto. Têm um caráter assintótico: aproximam da perfeição divina, sem nunca chegar a atingi-la, mas movem a vontade naquela direção. Manifestam a essência da alma humana, e por isso vale para cada um e para toda sociedade. Tolstoi usa uma bela comparação com um barqueiro, que, para chegar à outra margem de um rio rápido, não pode se dirigir em linha reta, mas deve remar contra a corrente.

A não-violência tolstoiana se exprime na não-cooperação, na desobediência civil e particularmente no repúdio ativo a toda a servilidade. Tolstoi sabe que o poder se alimenta da aceitação e do consenso; pior: da obediência cega e da submissão. A ética de Tolstoi é radicalmente libertária; a liberdade é um atributo inalienável e definitório do ser humano. Para isso apresenta no frontispício do livro, uma citação de Paulo na I carta aos Coríntios 7:23: “Não vos torneis servos dos homens”. Também não acredita nos efeitos libertadores de uma revolução violenta, mesmo de tipo popular. Considera politicamente inviável devido à complexidade e a potência do Estado moderno; e ineficaz, pois instaura uma opressão mais cruel que a anterior, como se verificou no regime de Goulag.

Pode-se afirmar um amadurecimento da consciência moral da humanidade, porque a violência se mostra cada vez mais ineficaz para resolver os conflitos sociais, tanto no interior das nações como nas relações internacionais. Retomando uma distinção de Kant, é possível constatar certo progresso em termos de legalidade (no nível dos princípios), embora não necessariamente em termos da moralidade (no nível das práticas). Frente à complexidade dos Estados e das sociedades modernas, a violência não funciona mais.

A defesa intransigente da não-violência vai junto com a deslegitimização do Estado, que para Tolstoi é a violência encarnada; não só um Estado autocrático, mas todo Estado, inclusive o democrático, onde a violência apenas deixaria de ser concentrada para ser mais difusa.
Para Tolstoi o exército existe para subjugar o povo em benefício de uma minoria, é o sustentáculo da tirania, sua função é matar. Sendo a vida um valor absoluto, não existem mortes legítimas, por isso, mandando matar, o exército transforma o soldado em um carrasco. Assim, o serviço militar deve ser condenado sem remissão pois trata-se nada menos do que uma preparação ou exercício para o assassinato, é uma forma especiosa de autotirania. Tolstoi chega a prever profeticamente o horror de um conflito mundial, que efetivamente irrompeu com a Primeira Grande Guerra.

A igreja é outro sustentáculo da violência paraTolstoi, não apenas esta ou aquela igreja concreta, mas a ideia mesma de igreja. As igrejas seriam fundamentalmente anticristãs, e se nelas se encontram pessoas boas, isso se deveria à própria virtude dessas pessoas e não à sua pertença à igreja. Todo o rico sistema simbólico da igreja é atacado como meio para “hipnotizar”, impressionar e adormecer a consciência do povo. As igrejas têm que escolher entre o Evangelho e o Dogma. Está convencido de que chegou a hora de entender e assimilar o cristianismo em sua forma pura, porque até hoje os cristãos não teriam compreendido sua verdadeira essência.

Tolstoi seria, por tudo isso, um anarquista? Ele confessa: “Não sou anarquista, sou cristão.” Acrescenta que os adeptos da não-violência são muito mais perigosos para o Estado do que quaisquer pretensos revolucionários, sejam socialistas, comunistas ou anarquistas. Pois o Estado sabe muito bem tratar com estes, que jogam pelas mesmas regras, mas já não sabe como se haver com os adeptos da não-violência, que se situam num campo onde o Estado já está de antemão derrotado.

Infelizmente, até mesmo as ideias de Tolstoi foram transformadas em dogmas e utilizadas de forma humana para exercício de controle e poder por seus seguidores; nada de novo na história do homem sobre a Terra. Para os que não gostam de ler, existe um excelente filme: A Última Estação, que traça os últimos momentos da vida deste grande escritor e filósofo, ilustrando não apenas suas ideias, mas também os conflitos e sofrimentos gerados por seus seguidores.

Pode-se então perguntar se esta visão é realista, se não é meramente utópica. Existem conflitos na sociedade e é preciso manter certa ordem social. Tolstoi acha que para isso não se precisa de um Estado, mas de uma sociedade civil madura, acredita na força da consciência moral, que chama de “opinião pública”. Mesmo assim, pode-se perguntar se e possível algum dia na sociedade prescindir de um órgão central de coordenação e direção, especialmente para as nossas sociedades complexas. Todavia, da provocação de Tolstoi podemos extrair seu núcleo positivo: Não se trata de o Estado se ocupar cada vez mais da “administração das coisas” e cada vez menos do “governo dos homens”? A função “política” do Estado não deve se reduzir aos limites mínimos possíveis? Nessa linha não seria perfeitamente pensável e desejável a superação gradual do sistema repressivo-defensivo?

Enfim, segue firme meus nossos sonhos e anseios por um mundo de paz, com menos miséria e injustiça.


(PS.: este texto é um resumo da apresentação feita pelo Fr. Clodovis Boff na segunda edição de O Reino de Deus está em Vós editado pela Rosa dos Tempos em 1994.)

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