domingo, 7 de agosto de 2016

Quando a emenda saiu pior que o soneto


   Diz-se que a expressão “a emenda saiu pior que o soneto” envolve um jovem aspirante a escritor e Bocage. Em uma ocasião, o jovem solicitou a Bocage que fizesse anotações em um de seus sonetos, assinalando os erros. Futuramente, Bocage devolveu o soneto sem nenhuma anotação sob a justificativa de que seriam tantas as correções que “ e emenda ficaria pior que o soneto”, consolidando a expressão que se transformou em ditado popular.
   Todos já tivemos nossos sonetos. Aqueles em que as emendas se tornam bola de neve e que nos mostram que o quanto antes voltarmos atrás melhor será. Não é verdade?
   Hoje nosso principal soneto ruim é o intento golpista de Temer e que sabemos, ele não pretende abandoná-lo. Sabemos que mesmo que um surto de grandeza ocorresse, isso não seria possível pela quantidade de acordos escusos com o qual já se comprometera
   Assumir a peripécia antidemocrática mesmo que sem volta é, contudo, ainda melhor que qualquer tentativa de reparação ou legitimação como as que vem ocorrendo de maneira descarada. As tentativas de esconder seu nome em eventos, bloqueios de perfil no facebook, e a massiva tentativa de conter vaias e manifestações contrárias são exemplos de emendas que tornam seu péssimo soneto muitas vezes pior que o original.
   As respostas são piadas das mais diversas, memes de internet, vídeos documentando a truculência da polícia retirando inofensivos cartazes de “FORA TEMER” e o aumento do número de descontentes documentados com uma riqueza sem precedentes na história.
   Assim, o soneto do jovem escritor e a tentativa de golpe tem algo em comum: ambos tomarão o mundo e continuarão marcados na história. A diferença reside no fato do jovem escritor ter ficado anônimo e de que Temer carregará a alcunha de golpista por toda a sua vida e futuras gerações.

por Alexandre Carrasco (https://medium.com/@alexandrecarrasco/quando-a-emenda-saiu-pior-que-o-soneto-652ba1c74ff4#.xq0dhvgzo)

Bolsonaro não é homofóbico (?)

*Arquivo de provas*


Estímulo à violência contra homossexuais
"Não vou combater nem discriminar, mas, se eu vir dois homens se beijando na rua, vou bater", disse Bolsonaro depois que FHC posou com a bandeira gay em 2002. (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1905200210.htm)

Bater em filho gay
Em um debate na TV Câmara, em 2010, ele sugeriu que a melhor forma de corrigir a homossexualidade seria através da violência. “O filho começa a ficar assim, meio gayzinho, leva um couro e muda o comportamento dele. Olha, eu vejo muita gente por aí dizendo: ainda bem que eu levei umas palmadas, meu pai me ensinou a ser homem. A gente precisa agir”, afirmou ele que repetiu a declaração várias vezes. Foi baseada nessa declaração que Ellen Page o questionou na entrevista. (https://www.youtube.com/watch?v=JZtaYvzzeTQ e https://www.youtube.com/watch?v=YVq4qYWnOZY)

Pouca vergonha
Em entrevista ao programa de humoristas do CQC, ele deu diversas declarações homofóbicas e racistas. Inclusive, foi condenado a pagar R$150 mil reais por essas declarações. Ele declarou que seus filhos nunca seriam gays porque foram bem educados, sugerindo que a homossexualidade é um comportamento ruim e um mau costume." (https://www.youtube.com/watch?v=HyaqwdYOzQk)

Parente gay não frequentaria a sua casa
“Gostaria de saber qual seria a sua reação se alguém de sua família decidisse abertamente pela homossexualidade”, sugeriu a pergunta um internauta... Jair Bolsonaro respondeu: “Seria problema dele. Se essa fosse sua opção para ser feliz não estaria (nem poderia) ser proibido por mim mas, certamente, não iria me convencer a frequentar minha casa”.
http://revistaepoca.globo.com/…/…/0,,EMI245890-15223,00.html

O valor do gay na sociedade?
“O que esse pessoal tem para oferecer para a sociedade? Casamento gay? Adoção de filhos? Dizer que se seus jovens, um dia, forem ter um filho, que se for gay é legal? Esse pessoal não tem nada a oferecer.” (http://g1.globo.com/…/n…/2011/03/estou-me-lixando-para-esse-...)

Não sou homofóbico
"Não tenho nada a ver. Cada um faz o que quer com seu corpinho cabeludo entre quatro paredes. O que eles têm para me oferecer não interessa. Agora, eu não quero que o público LGBT crie currículo para as escolas públicas de primeiro grau." http://g1.globo.com/…/n…/2011/03/estou-me-lixando-para-esse-...

Direito da maioria
Em entrevista, ele compara gays a pedófilos e diz que a minoria deve ser calar. “Que respeitar homossexual. Eles que tem que nos respeitar”. (https://www.youtube.com/watch?v=mdUSEQw-SxI e https://www.youtube.com/watch?v=HGhLceaxCjE)

Sangue gay
Bolsonaro polemizou em 2011 sobre doação de sangue dizendo que hospitais deveriam separar sangues de gays e homos para transfusões. Para ele, sangue de gays tem 17 vezes mais risco de transmitir a Aids, mas deu a entender que não queria receber sangue de um homossexual. Usando os riscos acrescidos de gays se infectarem com o HIV sexualmente, ele deturpou a informação e abriu uma campanha por uma lei para separar os sangues, que acabou abandonada. "O sangue de um homossexual pode contaminar o sangue de um heterossexual". (https://www.youtube.com/watch?v=Z1oGuNkGV2g)

Órgão excretor
O Deputado Federal usou sua boca para vomitar baboseiras em resposta contra o projeto de lei que defende punições contra ações homofóbicas. Ele diz que não dá para saber que uma pessoa é gay, transexual, lésbica ou travesti antes de agredi-la e que só porque uma pessoa faz sexo com o órgão excretor (antes mesmo de Levy Fidelix usar o termo e chocar o país no debate eleitoral de 2014), não merece uma lei de proteção. (https://www.youtube.com/watch?v=adtWbjpjjeg)

Preconceituoso com Orgulho
Em uma entrevista concedida aos leitores da Revista Época, Bolsonaro afirmou: “Sou preconceituoso, com muito orgulho”.

Gays são pedófilos
No programa do Danillo Gentile, ele fala, a partir dos 17m10, sobre seu posicionamento contra os homossexuais. “90% dos adotados vão ser homossexuais e vão ser garotos de programa deste casal” (referindo-se aos filhos adotados de casais homossexuais). (https://www.youtube.com/watch?v=3yxvUIp8GnY)

Morte de um filho gay
“Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo” disse em 2011, quando deu entrevista à Playboy. (http://noticias.terra.com.br/…/bolsonaro-prefiro-filho-mort…...)

Bolsonaro diz que vizinhos gays desvalorizam um imóvel
Ainda na entrevista de Playboy em 2011: "Se um casal homossexual vier morar do meu lado, isso vai desvalorizar a minha casa ! Se eles andarem de mão dada e derem beijinho, desvaloriza" (http://noticias.terra.com.br/…/bolsonaro-prefiro-filho-mort…...)

União gay
“O próximo passo será a adoção de crianças por casais homossexuais e a legalização da pedofilia”. “O Supremo extrapolou. Quem tem de decidir isso é o Legislativo, com a sanção do Executivo. Agiu por pressão da comunidade homossexual e do governo. Unidade familiar é homem e mulher.” (http://www.fabiocampana.com.br/…/proximo-passo-sera-a-legal…...)

Direito de discriminar
O deputado afirma ainda que quer garantir o direito de não querer alugar um imóvel ou contratar se a pessoa for LGBT, e acusa gays de quererem direitos especiais. E diz que vai lutar contra o casamento gay. “Primeiro que eles não tem na testa escrito que é homossexual. Eu alugo o meu apartamento para quem eu quiser... Agora se dá o azar deste cara ser homossexual, e ele vai em uma delegacia e registra uma queixa... e eu vou ser preso em flagrante só porque esse cara faz sexo com o seu aparelho excretor?... Se eu for contratar um motorista para levar o meu filho em uma escola e descobrir que ele é gay... eu vou contratar?” (https://www.youtube.com/watch?v=TcOpf2d9mNM)

Beijo gay – Família gay
“A sociedade é ofendida, a família é ofendida...” “A sociedade é conservadora. Eu considero agressivo”. “Lógico que me incomoda”. “Família gay não existe”. (https://www.youtube.com/watch?v=KL-eiuRZrDE)

Não é normal
“Ensinar para a criança que ser gay é normal? Não!” “Eu não deixaria meu filho de 5 anos de idade brincar com o filho da mesma idade filho de um casal gay”. (https://www.youtube.com/watch?v=7ftFLFcQTQg)

Dissimulado
“Não sei porque tanta discriminação. Minhas melhores professoras foram as prostitutas. Eu queria saber se isso também vale pro outro lado, se isso também vale para ele ser um bom professor ser gay”, provocou ele na Comissão de Direitos Humanos e foi censurado pelos colegas. (https://www.youtube.com/watch?v=S5Apq5CAdDw)

Kit Gay
“Dá nojo. Esses gays e lésbicas querem que nós a maioria entubemos como exemplo de comportamento a sua promiscuidade... Nós não podemos nos submeter aos escárnio da sociedade”. ( https://www.youtube.com/watch?v=gNJKJLCPrT4)

 Não existe homofobia
“Não existe homofobia no Brasil” e “a sociedade brasileira não gosta de homossexuais”. Em entrevista ao apresentador Stephen Fry, Bolsonaro diz que pais não tem filhos de orgulho gay e defende a passeata de orgulho hétero. “Bolsonaro é o típico homofóbico que eu encontrei por todo o mundo, com seu mantra de que gays querem dominar a sociedade, recrutar ou abusar das crianças. Mesmo em países progressistas como o Brasil, suas mentiras criam histeria coletiva entre os ignorantes, de onde a violência pode surgir e acabar em ataques brutais como o que matou Alexandre Ivo”. (https://www.youtube.com/watch?v=Hxh_laUnt3I)

Organizado por André Felipe de Souza

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Erundina com @s LGBTs

No dia 17 de junho realizou-se um maravilhoso encontro da comunidade LGBT de São Paulo com a candidata a Prefeita Luzia Erundina (PSOL). Tive a honra de transcrever a fala desta Mulher Maravilhosa e tenho muito orgulho em poder compartilhar suas palavras aqui em meu blog. Conheçam a coerência, dignidade e visão desta Política rara em nosso país!



Eu quero agradecer a vocês o carinho, a receptividade, a confiança e essa energia enorme que vocês mobilizam. Eu quero agradecer também o que vocês representam de força de mudança na sociedade, não só na sociedade brasileira, mas no mundo todo, e a um custo altíssimo, haja vista a tragédia que ocorreu em Orlando. Esta é uma tragédia que se dá em todo lugar desse mundo e desse país todos os dias. Que se juntou naquele momento e houve aquela expressão coletiva de um massacre só pelo fato de as pessoas se amarem e colocarem o amor como uma coisa importante em suas vidas. E Isso me dá a consciência do quanto vocês representam nos dias de hoje não só para São Paulo, para o Brasil, mas para o mundo. Vocês estão rompendo uma cultura milenar que insiste em se preservar e se impor às relações humanas, às opções de vida, à existência e à realização da vida. Vocês não tem talvez consciência do que vocês representam potencialmente; da ruptura de um mundo que envelheceu. É o fim de um ciclo histórico-social. Tem uma lógica que constrói a história e que obedece a uma espiral dialética. Essa espiral dialética realiza ciclos históricos em tempos não precisos, mas em cada momento dessa história esse ciclo atinge seu ápice, ele retorna e não volta no marco zero onde ele começou, ele volta num outro nível e quando recomeça um outro ciclo este outro ciclo se constrói de forma potencializada, vai para um outro nível, superior àquele primeiro nível, e cada mudança de ciclo representa uma transição dolorosa, a transição de um ciclo transitando para um outro ciclo histórico-social. Isso é um imperativo da realidade, e a realidade é dinâmica, é dialética; seja a realidade pessoal, seja a realidade social, seja a realidade da natureza, seja a realidade da política, seja a realidade da cultura. Obedece a essa lei, a lei da dialética. E é uma dialética que se impõe nos processos sociais, nos processos humanos, em diferentes ciclos da história humana. E nós estamos vivendo isso, uma virada de ciclo. É um ciclo que já está no seu estertor, por isso que ele vem com tanta virulência, essa reação homofóbica, essa reação conservadora, fundamentalista, autoritária, repressora; reprimindo e comprometendo as conquistas que os grupos sociais conseguiram a duras penas. Eles estão muito inseguros. Eles estão com muito medo. Eles tem medo do novo. E vocês são o novo. Vocês estão rompendo com uma cultura.
Daí a importância e o peso político que vocês têm. Vocês não se dão conta disso. Vocês estão rompendo com aquilo que sustenta os alicerces de uma sociedade velha, antiga, esgotada; que é a ideologia, que é a cultura. É nisso que vocês estão mexendo, estão provocando, estão questionando, estão criticando, estão botando um outro caminho. Quem quiser enxergar que enxergue. Quem não quiser vai de roldão, porque é um determinismo histórico.
Eu estou dando essa fala inicial. Eu não estou querendo fazer discurso. Eu lamento não ter chegado mais cedo para ouvir todos os depoimentos que vocês fizeram aqui. É Exatamente o que a gente está provocando nos ciclos de conversa. Essa campanha está se dando exatamente neste modelo. Já fizemos dezenas de rodas de conversa. Estamos vindo de uma. Dos mais diversos grupos. Grupos plurais. E essa campanha, ela tem uma característica, e ela tem um significado, que é exatamente viver esse momento de um fim de um ciclo histórico-social, transitando para um outro ciclo histórico-social. Nós estamos num processo que está rearticulando as pessoas, está resgatando essas pessoas, está voltando a interessá-las pela política, pelo debate político. E tudo é política. E a solução dos problemas do mundo. A solução dos problemas, dos vários grupos sociais, como o de vocês, não é outro senão a política, como expressão de poder. E vocês são uma força política com enorme potencial.
Sobretudo porque vocês mexem na essência das vidas, das relações de uma sociedade. Vocês estão mexendo com a cultura, com valores, com conceitos. Vocês estão mostrando que esses valores, esses conceitos, esses preconceitos, essa exclusão que existe na sociedade, é algo velho, não cabe mais na evolução humana, em pleno século XXI. Então não se pensem na sociedade como um grupo que vai edificar uma política própria de saúde, ou uma política própria de educação, ou uma política própria de emprego. Vocês tem que lutar pelo espaço de vocês como uma força política que tem o que dizer para a sociedade no sentido da transformação desta sociedade. Essas coisas virão como consequência. Vocês tem que disputar o poder. Não só o poder institucional, mas o poder da fala, o poder de decidir as questões que lhes dizem respeito diretamente, o poder de serem respeitados e respeitadas, de serem reconhecidos, de serem ouvidos. É disto que se trata.
Eu não era candidata. Eu nunca pensei em ser candidata mais uma vez para a Prefeitura de São Paulo. Eu estava mudando de partido porque eu não aguentava mais aquela coisa horrorosa que era o partido que eu estava nele. Fui para o PSOL, que há muito tempo vinha insistindo nisso. Mas antes de ir para o PSOL nós já estávamos construindo uma outra via, que não é melhor nem pior do que as outras. É algo diferente. É algo que veio no bojo, nessa busca que existe no mundo de outras formas. Essas formas estão todas superadas. Seja a forma partido, seja a forma movimento sindical, seja a forma movimento popular, seja a forma que for. Forma não cabe mais numa realidade em transformação, em movimento. É revolucionário. Essa campanha, companheiras e companheiros, não está sendo uma campanha para disputar votos. É uma campanha que está servindo para reencantar a política. Para trazer de novo as pessoas a serem sujeitos da política. Se chegarmos lá isso vai se transformar em uma outra forma de exercer o poder na cidade. E não tenham dúvidas, nós vamos para as cabeças e vamos radicalizar a forma de governar essa cidade.
Quando o PSOL conseguiu me seduzir – e foi sedução mesmo – eu cheguei a dizer para o Ivan (Ivan Valente): – Oh, Ivan, ou você diminui esse assédio ou eu vou dedar você a tua mulher. Mas já são vários mandatos juntos, tem muita coisa, e ao mesmo tempo nós estávamos nessa busca de um outro caminho, de uma outra via, sem excluir as que existem e que tem identidade entre si, entre PSOL, RAIZ, PARTIDA e outros grupos que não tem nome, não tem título, não tem rótulo, mas vem nessa onda do novo, da descoberta, da criatividade, da busca de saídas. Não quero falar em crise. Eu não vim aqui para falar em crise. Eu vim aqui para falar do futuro. Este futuro. E este futuro está nas nossas mãos.
E vejam vocês, companheiras e companheiros. Vamos supor que se consiga derrotar a tese do impeachment no Senado. O que que virá depois? O que que virá a seguir? O mesmo governo anterior? Vai resolver? Não vai. Se perder e o impeachment for aprovado, esse governo já nasceu morto. É um natimorto. Portanto há um vazio no cenário político do país e do mundo que explica a emergência dessa força nova, dessa energia sem modelo, dessa força criativa, dessa irreverência que vocês representam; e quanto mais isso for forte e presente na sociedade mais rápido a gente rompe com esse velho dessa sociedade. É disso que se trata.
E aí eu vim para o PSOL. E ai vem a pressão para eu ser a candidata a prefeita. Minha gente, eu estou com oitenta anos, oitenta e um anos. Vocês acham que isso faz sentido? Eu já estava me preparando para encerrar – eu não gosto desse negócio de carreira não, carreira complica a vida política. Mas eu não ia deixar nunca de fazer política. Mas, evidentemente, eu ia deixar de ser candidata, da militância partidária. Eu queria passar para a Muna (Muna Zeyn) e para outros que estão se assumindo no institucional. Mas a gente não faz aquilo que é da vontade da gente, sobretudo quando a gente decide na vida da gente a fazer aquilo que o povo dita e quer que a gente faça. É isso que me convenceu, junto com meus companheiros da RAIZ, com meus companheiros do PSOL, numa plenária que eu convidei para prestar contas dos mandatos. Tinha mais de quatrocentas pessoas naquele plenário. E eles não queriam discutir “prestar conta” nenhuma. Eles queriam me pressionar pra eu ser candidata a prefeita.
E aí eu não escapei. E de lá pra cá essa pressão é cada vez mais forte. A ponto de me dar a compreensão de que há uma determinação. Não sei de onde vem. Mas vem do povo. É energia do povo. Dom Tomás Balduino era um bispo que trabalhava com os índios, que enfrentava o latifúndio, a repressão no campo. Ele dizia que o novo, o povo é quem cria. A gente não cria nada de novo. Quem cria o novo é o povo. Mas a gente tem que estar junto dele para que ele nos diga para onde ir. Então, se isso a gente acredita de fato, a gente não se perde, e a gente não recusa, e a gente não escolhe, e a gente vai junto, e as coisas não secam.
Então essa campanha está servindo para isso; trazer de volta quem havia se afastado, se desinteressado da política, os mais antigos, os mais velhos, os mais experientes, e ao mesmo tempo está havendo uma convergência, de um encontro, dessa energia nova da juventude. De todo lado vem movimento de jovens; sem nome, com nome, com projeto, sem projeto; mas é uma energia tão poderosa, tão forte, tão criativa, tão emergente, que eu acho que tem um fenômeno novo que está acontecendo nesse processo. Eu estou aberta a ele junto com vocês. Não quero discutir política de saúde, de educação, de trabalho com vocês. Essas políticas nós vamos construir juntos.
Quando eu penso em governar essa cidade pela segunda vez depois de mais de vinte anos. Eu não estou querendo repetir aquela experiência do passado, que hoje é reconhecida. Tem propostas que não se viabilizaram naquele momento, mas estão vindo pelas mãos dos movimentos, como o passe livre, que era uma proposta nossa e de Lúcio Gregori. Porque depois de mais de vinte anos essa cidade é outra cidade. Os problemas, muitos são os mesmos, mas agravados. Antes nós éramos 9 milhões e quinhentos mil habitantes. Hoje nós somos onze milhões e quinhentos mil habitantes, numa região metropolitana de vinte milhões de habitantes. E os problemas de São Paulo não começam e terminam em São Paulo. Começam e terminam, e não terminam, porque os problemas vão para além da região metropolitana. E numa segunda gestão nossa nós temos que pensar São Paulo não dentro dos seus contornos. A gente tem que pensar São Paulo na região metropolitana. Pensar São Paulo no Brasil. E outra coisa; ser prefeito ou prefeita desta cidade não é simplesmente administrar. É sobretudo fazer política, é liderar politicamente.
Não posso entender que a cidade que tem o terceiro orçamento do país, é maior do que o orçamento de todos os Estados, com exceção do Estado de São Paulo. Que essa cidade não tenha voz e influência nas decisões sobre política econômica desse país. E nós queremos, junto com o povo, organizado, politizado, e protagonizando um novo governo, impor os interesses, não só de São Paulo, da região metropolitana, do país inteiro. Nós temos que fazer a macropolítica. E a questão econômica está no foco. Ouvi o companheiro, ele colocava aqui com muita precisão, com muita oportunidade. Nós não queremos só administrar os recursos, embora sejam grandes. São mais de 50 bilhões, o orçamento da cidade. Mas vendo a dívida social e a demanda reprimida, isso não representa nada, sobretudo a questão da dívida, e o companheiro tem toda razão. Nós temos que começar a discutir a questão da dívida. Mas não é pra zerar a dívida. É bobagem zerar a dívida. O problema não é ter dívida. É que esta dívida não veio para a área de investimento, não veio para um crescimento, não veio para dinamizar a economia da cidade e do país. Não. É uma dívida que veio para reproduzir juros sobre juros e portanto, fortalecer o capital, reproduzir o capital, a concentração de capital. Nós temos que quebrar essa lógica. E uma cidade como São Paulo, com o peso político que tem, o peso econômico que tem, o peso social que tem, o peso científico que tem, o peso cultural que tem, é uma força política que tem que ser mobilizada. Mas não é um prefeito ou uma prefeita, ou um vereador ou uma vereadora, ou o poder institucional. É o poder popular.
E a governabilidade não passa pela Câmara Municipal. Nós não vamos ter maioria na Câmara Municipal. Vamos querer eleger o maior número de vereadoras e vereadores. Mas vamos governar da mesma forma como fizemos há vinte e sete anos atrás em que tínhamos minoria na Câmara. Para ter maioria na Câmara teria sido mais fácil. Mas eu teria que ter feito concessões éticas. E para fazer concessão ética a direita faz melhor. Porque a direita está no poder há mais de 500 anos.
A economia não pode se limitar só à macroeconomia. Esse modelo que está aí, no neoliberalismo, da política, em que há um superavit primário. O superavit primário, que é aquele excedente que não é excedente, porque se deixa de aplicar nas políticas públicas e se reserva quatro e meio por cento do PIB, quando não é mais, para pagar os juros da dívida. Em 2015 foram 505 bilhões de reais para pagar os juros da dívida pública. E os juros de uma dívida que se multiplica, porque não é uma dívida, é uma dívida especulativa, é um dinheiro que entra para especular. Os títulos públicos que o governo vende ao sistema bancário para manter o próprio Estado, numa roda viciosa, viciada, que não tem saída. A saída é política. É ter o povo com você, e a força do poder popular, e impor as regras, inclusive na negociação dessa dívida. Nós temos de renegociar essa dívida alongando o perfil dela, negociando os prazos de pagamento de parcelas. Isso sem sacrificar os direitos sociais básicos da nossa população. Isso só se faz com força, e força política. E auditoria! Isso está associado a uma luta pela solução do problema da dívida pública do país. A dívida do país já é mais de três trilhões. Com essa sangria, todo dia, toda hora, uma criança que está nascendo, ela está nascendo devendo uma certa quantidade de dólares. Isso não é justo. Isso não é razoável. E nós temos que enfrentar isso politicamente.
Então gente. Só vai valer a pena uma nova tarefa dessas. E ela já está se dando. Não pensem que só vamos começar a campanha quando chegar o período eleitoral. Até porque no período eleitoral nós não vamos ter tempo de televisão. Não vamos ter tempo de nada. Mas nós já nos antecipamos tanto na conversa política com o povo e os nossos compromissos com quem é possível, que queremos fazer juntos, que nós vamos levar de roldão, seja os candidatos que estejam aí, com tempo ou sem tempo. Se eles não nos derem o tempo para participar do debate com os outros candidatos nós vamos fazer o debate na porta da emissora que estiver fazendo debate. Nós vamos alugar um caminhão, com um som e o gogô para a gente conversar com o povo, na frente da televisão, enquanto eles estiverem disputando aqueles segundos para responder aquelas perguntas absurdas, fazer aquele teatrinho que é feito na televisão. Seria até bom mesmo que eles não deixassem a gente participar do debate que a gente produziria esse debate nas portas das emissoras, de todas elas, quantos debates eles tiverem que fazer. Eu não preciso de tempo de televisão, para a gente fazer chegar o recado ao povo e trazer esse povo junto para fazer valer esse recado.
Minha gente, meu povo. Eu estou muito animada.
Não se justifica, nós que somos socialistas. E a palavra é esta mesma. Não tenham medo da palavra nem das implicações desta palavra. Socialismo é o futuro da humanidade. É um modo de vida, é um modo de existir. É uma referência que dá significado e sentido à nossa existência. E nós vamos mostrar que é possível, para justificar que pessoas que tem uma vocação para o socialismo, que tem uma opção de vida pelo socialismo, que é possível, que vai fazer diferença. Para justificar inclusive o governo, uma esfera do poder do Estado. Nós não mudamos o Estado quando ganhamos uma Prefeitura. Nós não ganhamos o controle do Estado quando ganhamos o governo do Estado nem mesmo quando se disputa e ganha o governo federal.
Vejam o que aconteceu com os governos do PT. Cederam. Abrindo mão e capitulando o seu projeto original. Não jogo o PT como se joga a água, a criança e a bacia fora. Foi um grande momento da vida da juventude naquele tempo, e eu costumo dizer: eu não sai do PT, o PT que saiu de mim. Porque aqueles princípios, aqueles valores, ainda orientam a minha vida, ainda dão sentido à minha militância pública. Mas não posso concordar com o rumo que os governos do PT tomaram, fazendo concessões em claro e tentando governar só com uma base congressual de A a Z do espectro ideológico e de uma certa forma esvaziando a luta popular.
O movimento sindical foi domesticado no governo Lula. Não se tem mais oposição nem situação sindical. Eles já negociaram, através do imposto sindical, aqueles dez por cento do imposto sindical, que está sendo distribuído pelas centrais sindicais que se multiplicaram. Eram duas centrais sindicais. Hoje tem mais de dez centrais sindicais, pelos dez por cento do imposto sindical. Enquanto isso há um fosso entre a base sindical e a direção desses sindicatos através das centrais sindicais. Tanto é que eu tenho dúvida. Será que no extremo dessa crise o movimento sindical teria condições de chamar uma greve geral? Eu tenho minha dúvida. Porque não se faz luta, sobretudo luta a um nível de comprometer um determinado regime, fazer valer a vontade popular, com sindicatos que desapareceram das portas de fábrica, que não tem mais bandeira, nem sequer do ponto de vista econômico, muito menos do ponto de vista político.
Então meu povo, para justificar que a gente, com essa visão da política, e com essa visão de mundo, e com esse compromisso com a história que a gente tem, que faz muito sentido ir para um governo de uma cidade, quão importante, grande, potente que ela seja. Mas o caráter do Estado é o mesmo. Seja no município, seja no estado, seja na união. A única coisa que diferencia, e a única coisa que justifica, que a gente vá pra lá, disputar o poder e exercer o poder, se esse poder for dividido com a fonte do poder e a sociedade, são os setores populares. E a nossa proposta de gestão é radicalmente democrática. Nós vamos diminuir a cabeça do poder, diminuir o número de secretarias. Vamos empoderar as subprefeituras. Potencializando os conselheiros, os conselhos de representantes de cada subprefeitura. E vamos fazer o planejamento da cidade à base de cada região administrativa da cidade. E vamos planejar o orçamento de acordo com cada região da cidade. Nós vamos distribuir a gestão financeira no âmbito de cada subprefeitura. Portanto nós vamos empoderar o poder local. E o poder local são as subprefeituras através do conselho de representantes eleito diretamente. E que o subprefeito possa ser resultado da decisão que aquele coletivo de pessoas eleitas diretamente pela população, numa relação direta, permanente. E para isso nós temos hoje os meios, que são as redes sociais, que é a internet, que é essa tecnologia fantástica que nós não tínhamos naquele tempo. E isso nos dá uma enorme possibilidade de governar online. Todas as decisões, todos os controles, toda essa emoção de toda decisão, ser acompanhada dia a dia pela cidadania, pelos cidadãos, em cada recanto, em cada ponto dessa cidade.
E aí podemos, quem sabe, começar um novo tempo na cidade de São Paulo. E a partir dela, quem sabe, a gente possa começar um novo tempo no país. Eu acredito nisto. Isto é um imperativo histórico. Nós temos potencialidades para isto. Nós temos uma juventude incrível que está sedenta de participação, com uma capacidade criativa imensa, uma generosidade fantástica, e vocês sem dúvida nenhuma são parte principal dessa força e da energia que está revolucionando a cultura em nosso país. Não é pouca coisa. Vocês estão mexendo na essência, naquilo, como dizia Gramsci, que é a semente da sociedade, é o alicerce da sociedade, é a ideologia, são os valores, é a cultura, são as concepções, é o modo de ver o mundo, de ler a realidade. Vocês estão mexendo nisso. Por isso que vocês incomodam tanto. Por isso vocês são tão reprimidos. Vocês estão balançando as bases, estão mexendo nas bases, nos alicerces, nas colunas que sustentam esse estado velho, carcomido, fundamentalista, impotente, incapaz. E o novo não se sustenta num vasilhame velho, não se sustenta com um vinho novo, borbulhando dentro dele, com a energia que tem um vinho novo. Vocês são esse vinho novo. E esse estado brasileiro, em todas as suas expressões, seja município, seja estado, seja união, é uma vasilha velha, onde se põe vinho, que não sustenta mais a vitalidade do vinho, que é essa juventude, essa energia nova, que está vindo, que está rompendo com as barreiras, com os obstáculos, e colocando o novo que está nascendo. Vocês são parteiros de um novo tempo, parteiras de um novo tempo. Isso não é pouca coisa.
Quando essa experiência for histórica, os historiadores verão o que isto significou. É preciso que a gente tenha consciência disso para a gente inclusive ser capaz de resistir aos ataques, às pressões, às violências, ao morticínio que existe contra vocês e contra os pobres dessa cidade, desse país. Na cidade mais rica do mundo a população de rua está morrendo de frio nas calçadas da cidade. É como diz uma jornalista que escreveu um artigo sobre aquelas minhas perguntas ao prefeito. Muitos dizem que não gostaram. Paciência. Eu não quero dizer nada para fazer ninguém gostar. Eu quero fazer aquilo que a minha consciência me diz. E aquela jornalista dizia o seguinte: a cegueira política mata mais do que o frio. E mostrava o quanto aquelas reações ou aquele silêncio inicial em relação a essa situação trágica, tratar seres humanos como objeto. A guarda civil metropolitana tirando os colchões, e tirando os papelões, que dava condições para se protegerem do frio de três graus e meio, como ocorreu dias atrás, dia esse em que morreram cinco, entre um dia e outro morreram cinco moradores de rua. Não gostaram que eu tivesse falado aquilo. Era melhor o silêncio para eles. Estão alegando que eu estou dividindo a esquerda. Que esquerda? Eu não estou falando isso porque eu sou candidata. Eu não estou falando essas coisas porque eu sou candidata. Eu estou falando essas coisas porque eu sou uma cidadã. E mais, eu sou uma cidadã que tem um mandato popular. Eu tenho a responsabilidade de não ser omissa, de dizer as coisas tal qual elas se colocam. Não faço as coisas para agradar ninguém, sobretudo se a minha consciência está me dizendo o que eu devo dizer. Pagar o preço que for.
Então meus companheiros e minhas companheiras. Desculpem que é um certo desabafo também. A gente, para fazer as coisas, têm que fazê-la com alegria, sendo felizes, tendo paixão, tendo tesão. É isso que nós precisamos ter nesse momento. Ter paixão por essa luta, ter paixão por esse momento que estamos vivendo, e que a história nos confia e nos delega como cidadãos. E fazendo dessa cidade uma cidade e um espaço para todos. A própria palavra cidade nos reporta ao termo cidadão, cidadania. Uma cidade tem que ser uma cidade para todos os cidadãos dessa cidade, e portanto toda as suas energias, todo o seu potencial, todas as suas ações, todas as suas políticas, tem que ter o crivo da sociedade organizada que tem que realmente atender de forma, o máximo possível e necessário, ao direito de cidadania de todos os que vivem, moram e constroem essa extraordinária e generosa cidade. Nenhuma outra cidade, nem Uiraúna, onde eu nasci, teria me eleito prefeita como me elegeu naquele tempo. Sofri muito preconceito também. Eu recebia carta com fezes dentro, durante muito tempo enquanto eu estava como prefeita. Mas isso não me intimidou, nem isso me tornou vítima. Não. Eu fiquei com pena de quem vai no banheiro, pega o seu papel, faz cocô e põe um pedaço de cocô lá dentro e ainda põe no correio. Naquele tempo era o correio. A carta era no correio. Era mais infeliz do que eu, se eventualmente. Entendeu? Então. Eu não paro no negativo. Eu faço do povo de São Paulo, cuja metade é de nordestino, que me elegeu prefeita pela primeira vez. E agora, muito mais do que só os nordestinos, muito mais gente numa cidade que é pluricultural, a cidade dos mil povos, quem sabe, vai nos levar de novo para lá, e ajudar a levar o povo para o poder, nessa cidade, e para usar, e para exercer e para transformar esse poder na força real do povo construindo o seu destino em São Paulo, e a partir dela, em todo o país.
Obrigada a todos vocês.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

CANTO AO SONO - Thomas Mann

Há escritorxs e textos que veem ao nosso encontro e se casam conosco.
Eu guardo muitos deles em mim, em minha alma, em minha mente.
Clarice eu precisei corporificar. Clarice fala tão alto e claro dentro de mim que precisei dar-lhe voz, dar-lhe corpo! É.
Hermann Hesse é quase eu mesmo. Knulp é minha morte!
Não vou falar de Pessoa, pois ele me define, define meu amar, para mim, verbo transitivo direto… contrariando o Poeta.
Thomas Mann me transporta a outras vidas e dimensões. Ler “A Montanha Mágica” foi uma viagem que durou sete meses. Durante a leitura realizei, de fato, muitas viagens. As últimas páginas foram lidas dentro de um ônibus e simplesmente não continha as lágrimas. Eram necessárias pausas para controlar a emoção e chegar aos últimos parágrafos. Foi o meu mais profundo adeus.
A sincronicidade dos textos que se aproximam de mim me surpreende. Hoje, em minha angústia, “Canto ao Sono” apropriou-se de mim. Quase escrevi-o eu mesmo. Pensei em recortar-lhe e enxertar-lhe palavras minhas… mas não ousei profanar este texto sagrado. Resolvi, mera a mente, digitar, cada letra, cada palavra, como um ator da escrita:

“Que a noite caia a cada dia; que a graça do sono estenda-se todas as noites, apaziguadora, trazendo o esquecimento sobre os tormentos e as misérias, o sofrimento e a angústia; que ainda uma vez esta bebida de consolo e letargia distribua-se aos nossos lábios ressecados; que ainda uma vez, após a luta, este banho morno acolha nosso corpo fremente, a fim de que, purificado do suor, da poeira e do sangue, revigorado, renovado, remoçado inconscientemente, dele emerja com sua vitalidade e prazer originais. Ah! Meu amigo! Sempre senti e considerei o sono como o mais beneficente e emocionante dos grandes fenômenos criadores do impulso cego. Saímos da noite sem sofrimentos, para penetrar no dia, e caminhamos. O sol é calcinante, andamos sobre espinhos e seixos cortantes. Sentimos nosso peito sufocar. Que assustador seria se a ardente estrada da fadiga se estendesse diante de nós sem fim provisório, sob uma luz cruz, a perder-se de vista. Quem teria forças de percorrê-la até o fim? Quem não se prostraria pelo desencorajamento e desgosto?
Mas eis a noite materna que surge novamente, sempre novamente, sobre o caminho de Paixão da vida. Cada dia tem um fim. Um bosque espera-nos, num murmúrio de fonte e numa verde penumbra, onde um maravilhoso frescor recobrará sobre nossa fronte a paz de nossa terra natal, então os braços estreitados num abraço, a cabeça tombada para trás, os lábios entreabertos e os olhos afortunadamente revoltos, penetramos numa sombra deliciosa.
Dizem que fui criança tranquila, nem barulhenta nem agitada, mas inclinada ao torpor e à sonolência, de um modo agradável para as mulheres que cuidavam de mim. Acredito, pois lembro-me de amar o sono e o esquecimento numa época em que não tinha nada a esquecer; e até me sinto capacitado para dizer que choque espiritual provocou nesta silenciosa inclinação natural a transformação em afeição consciente. Deu-se após eu ter ouvido o conto “O Homem Sem Sono”, a história desse homem preso ao tempo e às suas próprias ações, com ardor tão insensato, que maldizia o sono. Então, um anjo concedeu-lhe a realização de seu desejo, tirando a sua necessidade física de dormir, soprou sobre seus olhos para que eles se tornassem semelhantes a cinzentas pedras em suas órbitas e não se fechassem jamais.
Como esse homem lamentou seu pedido; o que então suportou, só, privado do sono entre todos os homens; como o triste condenado arrastou sua vida, até o dia em que a morte o libertou e quando a noite, que pairava inacessível diante de seus olhos de pedra, atraiu-o até ela e para ela. Não poderia contá-lo com maiores detalhes, todavia sei que durante aquela noite, não me continha de impaciência para que me deixassem só em meu leito a fim de lançar-me no seio do sono; nunca dormi tão profundamente como naquela noite em que ouvi essa história.
Desde então sempre fiz distinção entre os livros que poderiam dizer algo em louvor ao sono; e Mesmer, por exemplo, exprimiu-se bem de acordo comigo, quando sublinhou a possibilidade de que o sono (que forma a base da vida vegetal, e do qual a criança, em suas primeiras semanas de vida, sai apenas para alimentar-se) seja talvez o estado natural, original do homem, aquele que corresponde mais diretamente à finalidade do fenômeno de vegetação. “Não se poderia dizer, propõe o genial charlatão, que apenas despertamos para dormir?” Julgo isso extremamente bem pensado. Seguramente o estado de vigília é apenas uma luta para preservar o sono. Darwin também não pensa que o espírito se desenvolveu somente como uma arma na luta pela vida? Arma perigosa! Uma arma que, se nenhum perigo ameaça nossa segurança, vira-se frequentemente contra nós. Felicitemo-nos quando ela repousa, quando a chama crua e consumidora da consciência que temos do mundo ao nosso redor e em nós próprios reduz satisfatoriamente sua atividade, quando podemos, então, abandonarmo-nos novamente à nossa verdadeira e feliz natureza.
Contudo, se a angústia desperta-nos, não é ela que afinal nos afasta do sono. Acreditarias em mim, se te dissesse que não conheço insônia causada por desgosto ou preocupação? Só experimentei verdadeiro fervor pelo sono após ter passado a primeira fase de liberdade, de intangibilidade, quando os desgostos da vida sob a forma da escola começaram a turvar meus dias. Nunca mais formi tão deliciosamente quanto durante algumas noites de domingo para segunda-feira, quando após um dia protegido, pertencendo aos meus e a mim mesmo, a manhã seguinte ameaçava-me novamente com dificuldades duras e estranhas. E isso sempre acontece. Nunca durmo tão profundamente, sem experimento um retorno mais doce ao seio da noite, que quando estou infeliz, quando o meu trabalho não foi bem sucedido, quando o desespero me oprime, quando desgostoso dos homens encontro refúgio nas trevas…; e como, pergunto, poderia ser de outro modo, já que é naturalmente impossível que a inquietação e o sofrimento reforcem nossa afeição ao dia e ao tempo?
Sorrirás se eu te disse que preservo uma recordação precisa e reconhecida de cada leito no qual dormi durante algum tempo, de cada um deles, desde a pequena cama de grades com cortinas verdes, que foi o primeiro, até o imponente leito de acaju onde nasci e que durante sucessivos anos reinou em meus apartamentos de jovem celibatário? Atualmente possuo um leito mais leve, inglês, laqueado de branco. Por cima está suspenso, numa moldura branca, este quadro francês intitulado “Rumo à estrela”, o qual, com a sua atmosfera azul esmaecida, imprecisa e musical, é o mais belo ornamento de alcova que posso imaginar… Sorrirás, repito, contudo, que lugar insigne ocupa o leito em nosso mobiliário, este móvel metafísico, onde os mistérios do nascimento e da morte se cumprem, este habitáculo de linho perfumado, onde inconscientes, com os joelhos dobrados como antigamente nas trevas do ventre materno, reatamos de alguma forma o cordão umbilical da natureza, atraímos o sustento e a renovação por vias misteriosas… Não seria como um barquinho mágico, posto de lado num canto, velado e discreto durante o dia, e no qual, a cada noite, vagamos sobre o mar do inconsciente e do infinito?
O mar! O infinito! Meu amor pelo mar, que sempre preferi pela imensa uniformidade à ambiciosa variedade de aspectos da montanha, é tão antigo quanto meu amor pelo sono e sei perfeitamente onde essas duas simpatias encontram sua raiz comum. Tenho em mim muito hinduísmo, muita nostalgia indolente e profunda, por esta forma ou não-forma de perfeição chamada Nirvana ou o nada; e, ainda que artista, tenho uma inclinação bem pouco artística pelo eterno, que se traduz por uma aversão à articulação e à medida. O que contrabalança essa inclinação, creia-me, é a correção e a disciplina; é, para empregar a palavra mais séria, a moral… Ora o que é a moral? O que é a moral do artista?
A moral tem duas faces, concentração e abandono, e uma sem a outra nunca é legítima. A “concentração”, esta fecunda antítese da distração (a propósito da qual Grillparzer cria seu sacerdote uma magnífica linguagem), é necessário havê-la sentido para compreendê-la, não sendo raro que uma imagem particular provoque em mim, sempre de novo, a impressão mais profunda dessa palavra: a imagem do feto no ventre de sua mãe. Nossa cabeça, imagine, não se encontra redonda e acabada de uma só vez, de modo a ter apenas que se desenvolver como um todo… A princípio o rosto está aberto na frente, ele cresce pouco a pouco dos dois lados para juntar-se no meio, fecha-se lenta e firmemente a fim de transformar-se no rosto simétrico, dotado de visão, de vontade, individualmente condensado do nosso “eu”… É este processo de junção, de acabamento, de formação para tornar-se uma figura determinada, saído do mundo das possibilidades, é essa imagem que me faz pressentir aquilo que afinal se consuma além da aparência. Sinto, então, que toda existência individual deve ser compreendida como a consequência de um ato de vontade supra-sensorial, de uma decisão de concentrar-se fora do nada, de renunciar à liberdade, ao infinito, a dormitar e a mover-se na noite imaterial e intemporal, uma decisão moral de existir e sofrer. Sim tornar-se é, em si, um ato moral. De outra forma qual seria o significado destas palavras proféticas: “Nosso maior pecado é o de ter nascido?”… Só um boçal considera pecado e moralidade como conceitos opostos. Eles formam apenas um. Sem o conhecimento do pecado, sem o abandono ao que é funesto e nos consome, toda moral é uma afetação de virtude. Não são a pureza e a ingenuidade que constituem o estado desejável no sentido moral, não são a prudência egoísta e a arte desprezível de preservar a consciência tranquila que formam o elemento moral, mas a luta e o desgosto, a paixão e o sofrimento. “Aquele”, escreveu, em alguma parte, Heinrich von Kleist, “que ama a vida com prudência já está moralmente morto, pois sua mais intensa força vital, que é de podê-la sacrificar, atrofia-se, quando ele cerca-se de cuidados.” A palavra de maior sentido moral do Evangelho é: “Não resista ao mal!”
A moral do artista é a concentração, a força de concentrar-se egoisticamente, a decisão de dar forma, de modelar, circunscrever, renunciar à liberdade, ao infinito, à sonolência e ao movimento no domínio ilimitado da sensação. Enfim, a vontade de criar uma obra. Mas quando desprovida de nobreza e moral, exangue e repulsiva, é a obra nascida de uma arte fechada em si, prudente e virtuosa! A moral do artista é abandono, afastamento e perda de si próprio, é luta e tormento, aventura, conhecimento e paixão.
A moral é sem dúvida o maior encargo da vida, é a própria vontade de viver, todavia se o fato de se dizer que a vida é o bem supremo é mais que uma frase de teatro, então deve existir algo maior e mais definitivo que essa vontade: assim como a moral consiste em corrigir e disciplinar o que é livre e possível, para reconduzi-lo ao limitado e ao real, por sua vez requer um corretivo, uma explicação, uma exortação incessante (que não se pode deixar de ouvir) uma incitação ao recolhimento e à renúncia… Dá a esse corretivo o nome de sabedoria e seu contrário será a loucura do homem preso ao tempo e ao instante com tão cega paixão que chega a maldizer o sono. Dá-lhe o nome de religiosidade, seu contrário será a bestialidade ligada aos instintos pagãos e cuja fuça permanece presa ao chão sem ver a grande paz estelar acima. Chama-lhe nobreza, seu contrário será a vulgaridade que se encontra à vontade, inteiramente e sem nostalgia, na vida e na realidade, que não conhece pátria superior; apesar de que existem pessoas tão grosseiras, tão inabalavelmente eficientes que não se pode imaginar sua morte, sua consagração à morte.
Se não é a depressão que nos priva do sono, mas a paixão, chamada por Gotama Buda “devoção”, a fervorosa ligação do nosso “eu” à atividade cotidiana, isso é então mais que o sintoma de um estado nervoso. Significa que a nossa alma perdeu sua pátria, que no seu ardor se afastou tanto que não consegue encontrar o caminho do retorno; contudo, não é frequente termos a impressão que precisamente os maiores e mais fortes homens de ação, os apaixonados, se “reencontram” sempre com facilidade? Ouvi dizer que Napoleão podia adormecer quando queria, em pleno dia, entre pessoas, no tumulto de uma batalha indecisa…
Enquanto penso nisso, tenho sob os olhos esta imagem, sem grande valor artístico, cujo assunto sempre exerceu sobre mim infinita fascinação. Intitula-se: “É Ele”. Representa um pobre quarto de camponeses. Seus ocupantes, marido, mulher e filhos, comprimem-se à beira da porta aberta, numa contemplação espantada. Pois lá, no meio do cômodo, apoiado na modesta mesa, o Imperador está sentado e dorme. Está sentado lá, este símbolo da paixão egoísta e exuberante, tirou sua espada, seu punho descontraído repousa sobre a mesa, e com o queixo inclinado sobre o peito, ele dorme. Não sente necessidade de silêncio, da obscuridade, nem mesmo do travesseiro para esquecer o mundo. Sentou-se sobre a dura cadeira, a primeira que surgiu, fechou os olhos, deixou tudo atrás de si e dorme.

Certamente, é aquele que conserva pela noite mais fidelidade e nostalgia, aquele que todavia durante o dia produz obras formidáveis. Eis por que prefiro a obra nascida da “nostalgia da noite sagrada”, que, apesar de si mesma, volta-se para o esplendor de sua vontade e embalo sonhador. Enquanto escrevo, ouço “Tristão” de Richard Wagner. [Enquanto digito, ouço as suítes para violoncelo de J. S. Bach.]

domingo, 20 de março de 2016

Redes colaborativas e precariado produtivo

O modelo Peer-to-Peer transformou a cooperação numa etapa fundamental da produção cultural, tecnológica e econômica na sociedade contemporânea.

Nunca, na história da cultura, tivemos tantas possibilidades de descentralização dos meios de produção. Equipamentos digitais, câmeras de vídeo, câmeras fotográficas, equipamentos para músicos, DJs, produtores de audiovisual, computadores pessoais, softwares livres, uma enorme capacidade em duplicação de CDs, livros, música, que colocam em xeque o direito autoral tradicional e fazem vislumbrar um capitalismo do excedente e da possibilidade da livre circulação do conhecimento. Quais as bases “tecnológicas” dessas mudanças?

Segundo Michel Bauwens, em A economia política da produção entre pares (The political economy of peer production), à medida que os sistemas sociais se transformam em redes distribuídas, surge uma nova dinâmica produtiva: o modelo Peer-to-Peer (P2P), ponto a ponto. Mais que uma nova tecnologia de comunicação, é o modelo de funcionamento de novos processos sociais. E faz surgir um terceiro modo de produção, de autoridade e de propriedade, visando aumentar a participação generalizada de atores equipotenciais. Suas características mais importantes, segundo Bauwens, são: produção de valor de uso através da cooperação livre entre produtos que têm acesso ao capital distribuído; administração pela comunidade de produtores e não por mecanismos de alocação do mercado ou por uma hierarquia empresarial (“terceiro modo de autoridade”); disponibilizar livremente o valor de uso segundo um princípio de universidade, através de novos regimes de propriedade comum (“modo de propriedade distribuída ou entre pares”). A infraestrutura do P2P e das Redes Sociais Colaborativas tem algumas condições básicas, propostas por Bauwens, necessárias para facilitar a emergência de processos entre pares, que podemos resumir como: 1) A existência de uma infraestrutura tecnológica instalada. Os movimentos para a inclusão digital, os sistemas televisivos de file-serving – TiVo – e as infraestruturas alternativas de telecomunicação baseadas em meshworks são representativos desta tendência; 2) A existência de sistemas alternativos de informação e de comunicação que permitam a comunicação autônoma entre agentes cooperantes. A Web permite a produção, a disseminação e o consumo do material escrito, assim como o podcasting e o webcasting criam uma infraestrutura alternativa de informação e comunicação multimídia sem o intermédio dos meios de comunicação clássicos; 3) A existência de uma infraestrutura de software destinada à cooperação autônoma global. Um número crescente de ferramentas de colaboração que se inserem no software de redes sociais facilitam a criação de confiança e capital social; 4) A existência de infraestrutura legal que permita a criação de valor de uso e que o proteja da apropriação privada. A General Public Licence (que proíbe a apropriação do código software), a análoga Open Source Initiative e certas versões da licença Creative Commons desempenham esta função; 5) Por fim, o requisito cultural.

Para Bauwens, assim como para Antônio Negri, Maurizio Lazzarato e os teóricos do Capitalismo Cognitivo, esse requisito aponta para a difusão da intelectualidade humana, com as transformações nas formas de sentir e ser (ontologia), nas formas de conhecer (epistemologia), e em valores que contribuem para a criação de um “individualismo cooperativo”, uma das novas bases das redes colaborativas.]

O caso brasileiro

A estas proposições de Bauwens podemos acrescentar a “dobra” brasileira. Como enfrentar essa questão fugindo da criminalização do produtor e do consumidor de bens culturais? Se um camelô vende CD duplicado, DVD duplicado de música, de filme, se ele vende na porta do show de funk o que o garoto acabou de ouvir e dançar e quer levar para casa, será que o papel do Estado e das Corporações é criminalizar esse consumidor, criador, propagador, esses agentes de difusão virótica de cultura em que se transformaram os camelôs, os adolescentes, as vídeo-locadoras, os cineclubes, os coletivos, os blogueiros, as comunidades de troca de softwares, os produtores e consumidores de cultura locais e globais?

Em vez de reprimir, como legalizar “a cultura popular digital” (Hermano Vianna) que está se formando? Que não é só a questão da pirataria, é a oportunidade de um grupo de hip-hop ou de funk formar sua equipe de som, tocar na favela, nas comunidades, nos clubes, gravar sua música, queimar o seu CD e vender na porta do baile, formando uma rede produtiva que dá trabalho, ocupação e sentido para uma vida. Hoje, um computador pessoal de baixo custo e o acesso à internet são bens culturais essenciais no capitalismo cognitivo, pois o trabalho se tornou comunicacional e relacional. O desafio é como universalizar e socializar esses meios de produção de comunicação que são os meios de produção de cultura? Como apenas 10% da população brasileira possui computador em casa, então tem que ter bolsa cultura, bolsa comunicação, bolsa informática e colocar um computador funcionando em cada casa, centro, associação de moradores, quiosques públicos. Comunicação e cultura tornaram-se estratégicos para a sociedade civil. Nesse sentido, um dos programas mais significativos do governo Lula são os Pontos de Cultura, implementados pelo Ministério da Cultura em todo o país.

É preciso reconhecer a dimensão produtiva desses movimentos que não devem receber bolsas com contrapartidas, mas bolsas-investimento, pois eles próprios já são a contrapartida (Giuseppe Cocco), são os agentes produtivos que estão transformando realidades locais. São modelos embrionários de transformação radical das políticas públicas. São eles que produzem cultura a partir do local, vivem e moram em territórios abandonados e revitalizados de dentro. Também podemos falar de crise e extinção da tutela intelectual, econômica sobre os movimentos, que desconfiam das relações assimétricas e do roubo de capital simbólico e de um valor e um bem altamente valorado no contexto contemporâneo: a produção de mundos. Dessa forma, é a universidade, é a mídia, é o marketing social – ou o que eu chamo de “a lavagem social” – que precisa das periferias para se legitimar socialmente, intelectualmente ou até economicamente.

Emergência da cultura da periferia

A ascensão e a visibilidade da produção cultural vinda das periferias, subúrbios e favelas explicita esse novo valor. Uma produção cultural deslocada que traz consigo embriões de políticas públicas potenciais, com a possibilidade de redistribuição de riqueza e de poder, constituindo-se também como lugar de trabalho vivo e não meramente reprodutivo. Essa cultura das favelas e periferias (música, teatro, dança, literatura, cinema) surge como um discurso político “fora de lugar” e coloca em cenas novos mediadores e produtores de cultura: rappers, funkeiros, b-boys, jovens atores, performers, favelados, desempregados, subempregados, produtores da chamada economia informal, grupos e discursos que vêm revitalizando os territórios da pobreza e reconfigurando a cena cultural urbana. Transitam pela cidade e ascendem à mídia de forma muitas vezes ambígua, podendo assumir esse lugar de um discurso político urgente e de renovação num capitalismo da informação.

A cultura das favelas e periferias também é um contraponto para a visão estereotipada das favelas como fábricas de morte e violência, aspecto recorrente na mídia e no cinema que revela apenas a imagem da favela-inferno. A complexidade e ambiguidade da “dobra” brasileira no capitalismo global vem mostrando que as fábricas de pobreza e violência são também territórios e redes de criação. Essas vozes da periferia destituem os tradicionais mediadores da cultura e passam de “objetos” a “sujeitos” do discruso, concorrendo com os discursos da universidade e da mídia.

Nas favelas e periferias produziram-se novas relações de vizinhança, mutirões, redes de ajuda rizomáticas, cultura das festas, rituais religiosos, samba, funk, hip-hop, todo um capital cultural e afetivo forjado num ambiente de brutalidade compartilhado por diferentes grupos sociais. Desses espaços surgem práticas de cultura, estéticas e de redes políticas e de sociabilidade forjadas dentro dos guetos, mas conectadas aos fluxos globais (não é só o tráfico de drogas que consegue se globalizar) Grupos e territórios locais apontando saídas possíveis, rompendo com o velho “nacional-popular” populista e paternalista ou ideias engessadas de “identidade nacional”, e surgindo como expressões de um gueto global, dos guetos-mundo. Como falamos hoje de cidades globais, com questões e problemas comuns. O novo produtor de cultura das periferias faz parte de um precariado global: são os produtores sem salário nem emprego. São os trabalhadores do imaterial.

Estado-Nação versus Cidades da cooperação

Surgem também novas alianças entre as favelas e outros grupos isolados, como uma etapa no salto dos movimentos culturais locais e globais. Cidades da cooperação que rivalizam com o Estado-Nação, e funcionam à revelia dele. Movimentos que surgem da crise do Estado como provedor. Mas como dar suporte a essas redes socioculturais? Vivemos uma reestruturação produtiva. E na cultura isso é explícito. A cultura é hoje o lugar do trabalho informal (não assalariado). Movimentos que trabalham com informação, comunicação, arte, conhecimento e que não estão nas grandes corporações. Uma radicalização da democracia estimulando a produtividade social. Essa experiência da cultura a partir dos movimentos socioculturais surge como possibilidade de renovação radical das políticas públicas. Não é só uma mudança da política para a cultura, mas uma mudança da própria cultura política. São muitas iniciativas e podemos destacar, dentre outras, a economia e a cultura do funk e do hip-hop. São movimentos que produzem novas identidades e sentimentos de pertencimento, de comunidade, para além da música, e criam mundos e atividades produtivas. DJs, donos de equipamentos de som, donos de vans, organizadores de bailes, seguranças e rappers. Funkeiros que fazem até dez apresentações em bailes diferentes numa única noite. Todo um ciclo econômico em torno da cultura hip-hop e funk que explicita o primado da cultura na constituição da economia cognitiva do capitalismo contemporâneo.

Os movimentos culturais trabalham com uma ideia de educação não-formal como porta de entrada para a educação formal e para o trabalho vivo. Um movimento como o MST conseguiu construir escolas e propor programas educativos com mais rapidez que muitas prefeituras no interior do país. A produção cultural da periferia também não é formal. É precária, informal, veloz, e se dá em redes colaborativas, produzindo transferência de capital simbólico e real sem os tradicionais mediadores culturais e de poder. Os movimentos socioculturais podem atuar em todas as pontas: como produtores de cultura, administradores e beneficiários do resultado da sua produção. Se os atores culturais e sociais dispõem de recursos intelectuais e materiais para assumirem esse protagonismo, qual o papel das políticas públicas? Apoiar, estimular e promover, formar lideranças, agentes de cultura, administradores de cultura, de eventos culturais, dar as condições mínimas para esse desenvolvimento.
Artigo publicado em Global Brasil.
Março, abril e maio de 2007
Fonte: Caminhos para uma comunicação democrática. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2007. (Le Monde Diplomatique Brasil; 2) pp 111-119

O que fazer para democratizar as comunicações?

Para se desenvolver uma consciência coletiva crítica sobre como “funciona” a grande mídia brasileira, é importante a criação e atuação de veículos de comunicação alternativos.”

A constatação de que os grupos dominantes da grande mídia comercial brasileira sempre se recusaram a admitir qualquer avanço, por menor que seja, no sentido da democratização das comunicações, e sempre conseguiram que seus interesses prevalecessem na regulação do setor, provoca um inevitável desalento.
Qual seria uma perspectiva realista para orientar a ação dos vários grupos organizados da sociedade civil que reivindicam pelo menos ser ouvidos na formulação das políticas públicas de comunicações? A primeira e óbvia resposta a essa pergunta é que não se pode ingenuamente acreditar que a grande mídia, privada e comercial, um belo dia, posse a apoiar projetos de democratização da comunicação, abra espaço para a pluralidade e a diversidade de vozes de nossa sociedade. Isso não acontecerá.
O jornalista Bernard Cassen considerou essa “crença” uma ilusão fundamental daqueles que trabalham na perspectiva de que “um outro mundo é possível” nas comunicações. Em geral, dizia ele, se esquece que as empresas da grande mídia são atores centrais do processo de globalização e, portanto, a crítica ao processo deveria se dirigir igualmente a elas. Essa crítica direta, todavia, não ocorre porque aqueles que mantêm relações privilegiadas com jornalistas dessa grande mídia temem perder o acesso a ela. Ao se iludirem com os pequenos e ocasionais espaços oferecidos, deixam de investir naquilo que é de fato importante e estratégico. Essa ilusão, aliás, é parte importante do problema. Na verdade, ainda é extremamente restrito o segmento da população que percebe, com a necessária clareza, o que está em jogo. Tendo em vista a centralidade que ocupa nas sociedades contemporâneas, a mídia constitui-se hoje em locus privilegiado das disputas de poder. Seu papel mais importante decorre da capacidade que tem de “construir a realidade” através da representação dos diferentes aspectos da vida humana, sobretudo, da representação da própria política e dos políticos. É através da mídia que a política é construída simbolicamente e que adquire significado.
Trata-se, portanto, de uma questão de poder e nenhum ator político cede poder voluntariamente. O Executivo brasileiro, aparentemente, não tem tido forças para confrontar os grupos dominantes de mídia privados, eles próprios poderosos atores econômicos e políticos. Ao contrário, deles depende e se vê na contingência de com eles negociar não só as propostas de políticas públicas de comunicações, mas, inclusive, propostas em outras áreas (economia, educação, esportes, cultura etc.). Ademais, não se pode esquecer que os atores que exercem o controle do poder político somente são sensíveis a demandas que se expressem de forma organizada e representem potencialmente uma ameaça à sua permanência no poder. Por exemplo: no ano de 2005 foram realizadas duas marchas de setores organizados da sociedade civil interessados na reforma agrária a Brasília: MST e Contag. O Executivo, diante da demanda organizada, viu-se obrigado a negociar e atender a várias reivindicações desses movimentos. Há alguma possibilidade, a curto e médio prazos, de termos uma marcha a Brasília de movimentos sociais organizados da sociedade civil brasileira reivindicando a democratização das comunicações?
Ao contrário de setores como saúde, habitação e educação, por exemplo, as comunicações não são percebidas, pela imensa maioria da população como um direito humano básico. E mais: não se percebe como o controle da mídia pode determinar o próprio controle do poder político. Desta forma, uma das tarefas claras dos segmentos interessados na democratização da comunicação é trabalhar no sentido de ampliar a consciência coletiva da importância crítica deste setor para a democracia. Um dia ainda teremos as políticas públicas de comunicações percebidas pela maioria da população como já são hoje percebidas as políticas públicas de setores como saúde, habitação e educação. Até lá, os interesses dos grandes grupos privados de mídia certamente continuarão a prevalecer na regulação das comunicações.
Essa constatação, no entanto, não significa que nada há por fazer. Ao contrário. Existem várias iniciativas que podem e devem ser tomadas por instituições e movimentos da sociedade civil que trabalham na perspectiva de que “um outro mundo é possível” nas comunicações brasileiras. Alguns exemplos, não necessariamente na ordem de sua relevância:
1. A criação de jornais, revistas, emissoras de rádio, de televisão e agências on-line, alternativos à grande mídia, deveria constituir prioridade absoluta. É preciso que grupos empresariais alternativos e organizações da sociedade civil, por exemplo, disputem as novas concessões de radiodifusão quando licitadas pelo Ministério das Comunicações. Ao contrário de países como México, Espanha, Itália e França – para citar apenas alguns – até hoje não se conseguiu, a não ser por curtos períodos, constituir no Brasil uma mídia alternativa e economicamente viável. Existem experiências, em andamento, com histórico e potencial para se firmarem definitivamente no “mercado” brasileiro. Exemplos importantes são a Carta Capital, a Agência Carta Maior, a revista Caros Amigos, dentre outros.
2. A municipalização da competência para legislar sobre rádios comunitárias, apoiada em interpretação específica do inciso IV do Artigo 22 da Constituição, defendida pelo jurista Paulo Fernando Silveira, abre uma nova perspectiva para a comunicação comunitária. Projetos de lei nesse sentido já foram aprovados em importantes cidades, inclusive em São Paulo.
A modificação da atual legislação restritiva da radiodifusão comunitária; a regularização das emissoras de rádio que a grande mídia chama de “piratas”; a criação de um fundo de apoio público permanente para a radiodifusão comunitária; a suspensão do fechamento de emissoras de rádio pela Anatel e o fim das prisões que continuam sendo feitas pela Polícia Federal, são bandeiras fundamentais.
3. Uma das explicações oficiais utilizadas para justificar o recuo do governo federal em relação as Retransmissoras de Televisão Institucionais (RTVIs), em 2005, foi a necessidade de que primeiramente funcionem os Conselhos Municipais de Comunicação Social (CMCS) Esses CMCS podem ser criados por iniciativa de qualquer vereador e basta a aprovação de uma lei municipal. Uma referência possível, por exemplo, seria o CMCS de Porto Alegre que, embora não tenha sido ainda institucionalizado, funcionou e tem projeto de lei pronto.
4. Acompanhar as renovações e as novas outorgas de concessões das emissoras de rádio e de televisão existentes no município poderia ser uma das primeiras tarefas desses CMCS. Nem todos sabem que as emissoras de rádio e televisão são concessões públicas precárias, de 10 a 15 anos, respectivamente. O verdadeiro dono do serviço público de radiodifusão é o cidadão e não o empresário privado que explora a concessão.
Os CMCS deveriam obter junto ao Ministério das Comunicações a relação das concessões existentes em seu município e as datas de vencimento de cada uma delas. Essa informação deveria ser amplamente divulgada na comunidade. Subcomissões dos CMCS poderiam ser criadas para acompanhar as programações dessas emissoras que usariam como critério de avaliação as normas estabelecidas no capítulo da Comunicação Social da nossa Constituiçao (Artigos 220 a 224), ou seja, a ausência de oligopólios e monopólios na mídia; a preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; a promoção da cultura nacional e regional; a regionalização da produção cultural, artística e jornalística; e a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal.
À época da renovação dessas concessões, as avaliações feitas nas comunidades deveriam ser encaminhadas à Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados – que julga os pedidos – com cópia para os deputados federais da região e como expressão da opinião da comunidade.
Outra tarefa dos CMCS poderia ser explicitar as relações existentes entre os políticos profissionais e entidades concessionárias de rádio e televisão. Como se sabe, há no Brasil um vínculo histórico entre a mídia e as elites políticas locais e regionais, quase sempre escamoteado, e que muitas vezes só se revela pelo conhecimento direto das relações de parentesco nas comunidades.
A existência dos CMCS não é, evidentemente, condição necessária para que se realizem as tarefas acima sugeridas e tantas outras. Qualquer grupo de cidadãos pode realizá-las.
5. Embora a Constituição determine a observação do princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal para a outorga e renovação de concessões, permissões e autorizações de radiodifusão (Artigo 223), ele não tem sido observado.
Nessa perspectiva, o fortalecimento da mídia pública e da estatal – federal, estadual e municipal – é necessário na busca do próprio equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal A recente Medida Provisória criando a Empresa Brasileira de Comunicação é um importante avanço neste sentido. Resta garantir que a comunicação pública tenha mecanismos institucionais, tanto de gestão como de controle, que garantam sua autonomia e tal independência.
6. Em diversos países do mundo os “observatórios de mídia” exercem um papel permanente de reflexão crítica sobre o setor de comunicações. Eles constituem a melhor maneira de avaliar a mídia de acordo com seus próprios critérios: objetividade, neutralidade, pluralidade, diversidade e localismo, dentre outros. O resultado é que, frequentemente, a grande mídia é flagrada em contradição com suas próprias normas.
Tornar públicas essas contradições, além de aumentar a consciência coletiva crítica sobre como “funciona” a grande mídia, exerce também um importante papel pedagógico. Envolver sindicatos, associações comunitárias, entidades estudantis e cursos de comunicação no trabalho de “observação” permanente da grande mídia é, portanto, tarefa básica.
7. Os cursos de comunicação deveriam preparar seus milhares de alunos, prioritariamente, para exercer sua profissão em uma nova mídia que precisa também ser construída como alternativa à grande mídia privada. Isso implica mudar os velhos paradigmas dominantes no ensino e na pesquisa de comunicação. Não é tarefa simples, nem fácil. No entanto, é absolutamente necessária.
Outras iniciativas locais como a introdução nos currículos escolares de disciplinas sobre a mídia; a criação de associações de ouvintes, telespectadores e leitores; e a criação de circuitos alternativos de cinema e vídeo, certamente, poderão ser tomadas.
Como se vê, apesar do forte desequilíbrio existente na correlação de forças entre os principais atores que têm interesses em jogo no setor de comunicações, muito pode ser feito para a sua democratização. Às vezes avanços não acontecem em razão de muitas contradições e disputas internas existente dentro do próprio campo alternativo. Esse é outro obstáculo histórico a ser superado por aqueles que acreditam que “um outro mundo é possível” nas comunicações brasileiras.

Outubro de 2007
Autor: Venício A. de Lima
Fonte: Caminhos para uma comunicação democrática. São Paulo: Instituto Paulo Freire, 2007. (Le Monde Diplomatique Brasil; 2) pp 83-91