sábado, 21 de julho de 2012

Santarém - Belém

     Triste por sair de Alter do Chão, lá estava eu, de volta ao rio, prestes a embarcar no NM Amazon Star. Este foi o pior trecho da viagem. Talvez por sentir ter que deixar Alter do Chão, mais o cansaço já esperado dos dias de barco e rede. Mas as condições deste navio também não ajudaram em nada. Apesar de toda propaganda sobre ele, suas condições são precárias, tão precárias quanto qualquer outro navio, com a diferença que em seu caso, existem mais de 800 pessoas convivendo no mesmo lugar, nas mesas condições, por dias seguidos. Com o tamanho, mais potente é o motor e portanto, maior o barulho. Imagine o ronco deste motor durante a madrugada... Para piorar, com seu tamanho maior, maior é a capacidade de carga, o que tornava as paradas em cidades mais demoradas (2 a 3 horas), pois maior era o volume de cargas para carregar e descarregar. Enfim, um conjunto de fatores que só pioraram as condições da viagem. Enfim, um problema sem solução, resolvido está. Vamos então falar dos fatores "positivos" da viagem, para compensar os negativos.

     A paisagem, como sempre, é belíssima. A grandeza do rio. A força e beleza da natureza, com suas chuvas, ventos e cores.

      Nas margens, as moradias, conjuntos de pequenas palafitas, alguns pequenos descampados para se jogar futebol. Nenhuma fonte de eletricidade. Apenas o rio, a floresta e seus elementos.













     Também era comum cruzar outros barcos, tanto navios com passageiros que podem ser NM, navio motor, de ferro, ou BM, barco motor, de madeira, ou ainda os FB, ferry boats para transporte de cargas. 



     E sempre o rio, seus afluentes, seus canais. Um labirinto por onde o navio ia se perdendo. 
















     E também as pessoas. É impossível uma viagem como esta sem algum contato com os demais passageiros, a troca de histórias, informações, vidas, curiosidades. Como passava uma boa parte da viagem escrevendo, fui abordado pela Raisy e passei por um longo interrogatório, e até ganhei um poema que ela escreveu em meu caderno de anotações. O mais estranho nestas abordagens era a decepção quando descobriam que eu não era um estrangeiro, mas apenas um caipira do interior de São Paulo. Até mesmo em uma abordagem da Polícia Federal para vistoriar as bagagens, um dos policiais já me abordou com um - Estrangeiro?, seguido de uma risada quando respondi: - Não, caipira, do interior de São Paulo.
     Interessante também foi quando alguns pequenos barcos pegavam "carona" no navio. O navio era literalmente "pescado" com um gancho e depois o barco era amarrado na lateral. Do pequeno barco subiam vendedores de frutas, de camarão ou de polpa de açaí. Havia ainda um pequeno barco ocupado por crianças, que também pegou carona no navio, mas neste caso, para pedir esmolas aos passageiros. Até mesmo no meio da floresta existem os pedintes... 


     Na madrugada do último dia, a última parada do navio. Breves. Uma cidadezinha agradável, apenas incomodou a longa espera de quase 3 horas para descarregar mercadorias. Ainda mais quando se sabe que o destino está bem próximo.



     Chegamos então ao último dia de viagem. O dia nascendo, lua e estrelas se esvanecendo no céu. O rio mar imenso. O sol colorindo o horizonte com seus raios.


Alter do Chão! O ápice da viagem!

     Uma parada que não estava programada, mas se tornou a descoberta mais marcante da viagem.
     Alter do Chão é chamada de "O Caribe brasileiro"... desdenho deste rótulo, ou de qualquer outro. Alter do Chão não precisa de rótulos. Alter do Chão é bela e maravilhosamente Alter do Chão. Nasceu em mim um desejo intenso de querer morar neste lugar, de envelhecer neste lugar, de morrer e deixar meu corpo integrar este lugar. É muito difícil descrever este sentimento...
     A viagem de ônibus foi bizarra. Não é apenas em São Paulo que os ônibus andam lotados. Aqui também. A diferença é a paisagem, a pequena estrada no meio da floresta, e o som alto, tocado músicas dor-de-cotovelo: "está em suas mãos a chave que eu perdi"; "para você o meu amor era um cheque nominal"; "às vezes a gente se entrega demais e se esquece de ouvir a razão"; acordo com frio e penso em ouvir sua voz ... faço amor com você em meu pensamento ... saio pra rua e só volto depois que amanhece"; perdi o endereço da felicidade"; e a mais imponente, "cadê você, cadê você, você passou, o que era doce e o que não era se acabou, cadê você, cadê você, você passou, no videogame da solidão a história acabou"; ou a melhor de todas, "faz 14 anos que a gente namora, agora ela encasquetou que quer se casar". Será que alguém entendeu porque eu estava rindo tanto?
     Chegando na cidade, não demorei muito em escolher um lugar para me hospedar. Ao me aproximar de Alter do Chão eu já sabia que este lugar seria mágico para mim. Não existe explicação para estas situações. É como um amor à primeira vista. Você não sabe o porquê, mas você ama intensamente, sem ao menos conhecer o sujeito amado. Assim foi com Alter do Chão. Acomodei rapidamente minha mochila na primeira pousada que encontrei e sai andando sem rumo.
     A cada respiração um prazer. A paisagem. As casas. A igreja. A escola. As ruas. As praias. O cemitério. As plantas. Para qualquer lado que eu olhava eu sentia algum impacto, como se eu estivesse a nascer naquele instante. Não me cansava de caminhar e já queria ficar mais tempo nesta cidade... mas a passagem para Belém já estava comprada para o dia seguinte. Portanto, teria que aproveitar neste momento ao máximo. E assim fiz.











     A Igreja de Nossa Senhora da Saúde. Simples e bela. A mesa do altar em madeira tendo como suporte duas mãos. No alto, um barrado que mostra a estrutura antiga da igreja. Uma ótima ideia para garantir a restauração e manter uma visão do passado.



     A escola também é um monumento digno de registro. Janelões abertos para a rua, garrafas pet cercando pequenos canteiros com plantas. Placas com dizeres significativos como "Seja bem-vindo, a escola é nossa" e "Mina escola, minha história".











     Outra curiosidade é uma pequena árvore de flores de um branco intenso. Esta árvore está espalhada por diversos lugares aqui na região Norte, é uma árvore muito bonita e ficou para mim como um símbolo da região. Mas ao perguntar o nome desta planta às pessoas, ninguém soube me dar a resposta. Fazem observações do tipo "pega fácil". De fato, um senhor em Alter do Chão me ofereceu um galho desta planta, me informou que era só eu colocar no chão, aguar e a planta criaria raízes e floresceria. Foi como me senti em Alter do Chão, bastou eu fincar meu pé por lá que já quis criar raízes. O nome desta planta eu só fui descobrir em Belém, no Ver o Peso. Um nativo que tem uma banca de plantas, tinha entre elas uma muda desta. Finalmente um nome: Glogue, ou Lírio do Amazonas.


     Descobri também na caminhada que nos dias 13, 14 e 15 de julho irá acontecer o Festival do Borari.  É uma festa que retrata a origem dos índios Borari, os primeiros habitantes desta vila; http://notapajos.globo.com/lernoticias.asp?id=50328&noticia=XVIII%20Festival%20Borari%20ser%C3%A1%20nesta%20sexta-feira. Mais um motivo para aumentar minha tristeza em partir no dia seguinte.
     Voltei à pousada para colocar minha sunga e aproveitar as praias para nadar. Nadar no meio de árvores.  Caminhar pela água rodeado por peixes. Me aproximar de outras pessoas e crianças brincando neste rio com uma alegria deliciosa, sem gritos histéricos, mas com uma alegria forte, fonte e reflexo do prazer de estar ali.
     Passadas algumas horas a fome apertou. Voltei à pousada, tomei um banho, troquei de roupa e fui até a praça central comer um Pacú na brasa no restaurante. Depois do almoço descansei um pouco, mas a vida urgia. Coloquei a sunga novamente e voltei para a praia, aluguei um caiaque e sai remando pelas proximidades, atravessei o rio, fiz um passeio entre as cabanas que ainda estavam alagadas nesta época, parei em vários lugares da ilha e voltei a nadar, a passear entre os peixes, a degustar cada instante deste paraíso.
     Voltando para a praia, devolvi o caiaque e me sentei em uma das mesas onde o som era agradabilíssimo: samba de excelente qualidade, Pink Floyd, Sting, Garfunkel... enfim, uma trilha sonora rara de se ouvir nos dias atuais. Nesta mesa de bar acompanhei o por de sol até o céu ficar estrelinhoso.
     Depois de algumas cervejas e uma caipirinha deliciosa, o dinheiro chegou ao fim... voltei até a pousada, tomei outro banho, troquei os trajes, voltei ao restaurante. Saciada as necessidades básicas sai para a última caminhada por este paraíso.

     Para encerrar esta deliciosa estadia, havia um grupo de Carimbó tocando em uma "pizzaria" na praça. Aproveitei para tomar mais uma cerveja e apreciar o acontecimento. Cansado e satisfeito, me recolhi.
   


     No dia seguinte não queria nem mesmo me despedir. Iria tomar o café da manhã na pousada e pegar o ônibus de volta a Santarém para embarcar para Belém.

Santarém

     Santarém poderia ser uma parada desnecessária. Chegamos na cidade ainda com dia claro. Poderia ter ido diretamente para Alter do Chão, o que seria maravilhoso. Mas como esta é a minha primeira viagem por esta região, conhecer Santarém também fazia parte do roteiro. Assim sendo, passei esta noite por aqui.
     Uma boa caminhada até chegar ao centro da cidade, a procura rápida por um hotel simples. Acomodação. Passeio, jantar, dormir em uma cama! Nada especial para dizer sobre a cidade. É bonita, também. Com um movimento mais popular do que turístico.
     O grande acontecimento nesta cidade foi conhecer o Paulo no hotel onde me hospedei. Paulo é um jornalista que trabalha na cidade de Jacareacanga, próximo à reserva indígena dos Mundurukus, onde houve um conflito recente. Conversamos por horas. Ele me lembrou o jornalista Viktor Laurence, personagem do livro "Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios", romanticamente interpretado por Gero Camilo na versão feita para o cinema.
     Assim são as viagens, paisagens naturais, paisagens urbanas, paisagens humanas. Tudo vale a pena.
Visual durante o café da manhã em Santarém

Finda o primeiro dia... nasce um novo!!!

     O primeiro dia navegando pelo rio vai chegando ao fim. O sol, tão cansado quanto eu, começa a executar seu show de despedida. Escolho um bom camarote e me encanto com a aquarela de cores, o silenciar do dia, os cheiros que a noite traz. Mais um espetáculo magnífico da natureza. E ao retornar à minha rede vislumbro outro cenário lindo: o conjunto colorido das redes ocupando todo o convés.
     Noite adentro, banho, repelente, jantar, apreciar estrelas, chega o sono e a busca de algum conforto para conseguir dormir na rede. Quando as luzes se apagam percebo a péssima escolha do local onde estendi minha rede... algumas luzes azuis ficam acesas para evitar uma escuridão total no ambiente. Infelizmente, uma destas luzes está exatamente sobre a minha cabeça.
Boa noite!










     Já são as chamadas altas horas, nada resta a fazer a não ser me deixar vencer pelo cansaço e dormir, apesar das inconveniências.
     Passadas várias horas de sono intranquilo, chegamos a |Parintins. O Festival dos Bois já acabou, mas nestes dias teve início as festividades da padroeira e, novamente, um grande fluxo de pessoas acorre à cidade. É por este motivo que, mesmo sendo madrugada, o navio todo retoma vida, como se dia fosse.
     Parintins, em luzes da madrugada, é uma linda cidade, arrumada, preparada para recepcionar seus visitantes. Vendedores ambulantes trafegam pelo navio oferecendo seus produtos e quitutes. Novas arrumações de rede, espaços se abrem e eu, rapidamente, troco minha rede de lugar, vou para uma vaga que se abriu ao lado da parede, na frente do navio, onde começam os cabines. Assim terei apenas um vizinho de rede, e do outro lado uma parede, longe de todas as luzes. Na minha situação isto é o maior luxo que eu poderia obter.
     A sirene toca e o navio retoma a viagem. Não falta muito para raiar o dia e este é outro espetáculo que agendei em meus compromissos de viagem.
     Ainda na rede percebo que um novo dia está chegando. No meio da floresta não são necessários relógios para averiguar este momento. Assim como toda a vida ao seu redor muda quando chega a noite, o mesmo acontece quando o dia vem raiando. A natureza se antecipa ao dia. E como eu já estava à espera deste momento vou até a frente do navio, que aponta para o nascente. Já havia preparado os detalhes para esta ocasião, em especial, a trilha sonora.
     Fiquei feliz ao perceber que não era o único passageiro que aguardava este momento. Não eram muitas pessoas, mas umas poucas, que também foram até a frente do navio e se acomodaram da melhor maneira possível para apreciar mais este espetáculo.
Bom dia!
     Para engrandecer esta aurora, minha trilha sonora escolhida foi 2IHU Kewere - Rezar, uma missa em tupi gravada pela Marlui Miranda. Quando o astro-rei já havia descortinado seus raios, a missa chegou na Ação de Graças e eu, ser místico, me levantei para agradecer a Tupã por toda a riqueza que estava a vivenciar.
      E seguimos nosso curso: café da manhã, leitura, escritas, caminhadas pelos ambientes do navio, brincar de acompanhar minha localização pelo GPS do smartphone, admirar paisagens, ventos, chuvas, outras embarcações, almoço, sonecas, repetir alguns dos itens já citados, algumas paradas em outras cidades, outros vendedores, compra de quitutes e frutas, até que Santarém surge no horizonte.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

A viagem de navio tem início

     Este era o objetivo principal desta viagem, utilizar o navio como transporte público e turístico, navegar pelo rio, saindo do centro do continente em direção ao mar. Seriam 5 dias de navegação entre Manaus e Belém do Pa'rá.
     Como não sou nada rígido em minhas decisões, acatei uma sugestão de parar em Santarém e conhecer, viver, pelo menos um dia, na paradisíaca cidade de Alter do Chão. Depois da conversa com o vendedor de passagens esta mudança foi assumida e posso afirmar, foi uma das melhores mudanças de decisão que tomei na minha vida. Foi transformar uma viagem típica de férias em uma viagem marcante em minha vida, uma viagem que traz a sensação de que você nunca será a mesma pessoa depois desta experiência.
     Mas ainda não chegamos lá. Estamos ainda na manhã do primeiro dia de embarque em um navio que ira cruzar os rios do Amazonas.
     Eu carrego comigo alguma maldição... nada pode ser tão simples a ponto de que nenhum obstáculo surja para ser ultrapassado. Como diz o Mário, "nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas / nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra".
     Chegando nas docas, lá estavam dezenas, talvez centenas de embarcações, todas muito parecidas entre si, base branca e detalhes em azul, e em um porto como este não existem plataformas ou portões numerados para onde se dirigir para embarcar.
     Embora nos aeroportos as mudanças de última hora causem a mesma sensação de estar perdido, ao chegar ao porto me veio esta angústia, para onde eu vou? Onde está o meu barco? Qual destes nomes pintados azul em fundo branco é o NM São Bartolomeu II?
     Procurei o local onde o navio estava ancorado no dia anterior, e lá estavam vários navios semelhantes, o meu devia estar entre eles, mas como chegar até lá? Fui em direção a uma rua que levava àquela doca e pedi ajuda a um segurança que controlava o fluxo de veículos que passavam por este caminho. E aqui temos mais uma gentileza cara, como a que citei anteriormente.
     Gentilmente o segurança interfonou e "confirmou" que o NM São Bartolomeu II estava ancorado naquela doca, mas para seguir meu caminho era necessário entrar com um carro, naquele caminho não eram permitidos pedestres. Como chegar até lá? De táxi, R$ 10. Aceitei a proposta, paguei e aguardei. Logo surgiu uma perua kombi, o segurança conversou com o motorista, problema aparentemente resolvido, entrei no carro e fui levado confortavelmente até onde os navios estavam ancorados. Lá chegando, onde está o NM São Bartolomeu II? Meu caronista não tinha a mínima ideia... procurei, não encontrei... Senti aquele cansaço típico da consciência do engodo. Para piorar o mal estar, havia uma passarela para pedestres, cuja entrada ficava do lado oposto ao da entrada de carros, sem taxas, apesar da grande caminhada que seria necessária.
     Aborrecido, procurei outro funcionário do porto que, para minha sorte, era íntegro e me amparou. Fez algumas ligações, contatou seu superior, tive que denunciar o comportamento do colega, aborrecimento seguido de constrangimento. O navio procurado estava nas "escadarias", ao lado do local onde esta pedra surgiu em meu caminho. Era só ter olhado para o lado oposto e avistado o São Bartolomeu. Este funcionário conseguiu outra carona para mim, desta vez sem taxa de gentileza, e me acompanhou até o local onde este círculo começou.
     Chegando à portaria, houve toda uma conversa de esclarecimento sobre o ocorrido, as desculpas e o diz-que-disse, que não foi assim, que o assado era outro. Enfim, ali estava o NM Sâo Bartolomeu II. Agradeci a quem realmente se dispoz a ajudar, tratei a perda como ajuda a um necessitado e segui meu caminho.
     Embarquei, a apresentação da passagem... será aceita? Foi, sem qualquer problema ou questionamento. Dentro do barco encontrei o vendedor da passagem, o cumprimentei. Eram necessários cordões para amarrar a rede nos suportes, R$ 5, incluída a gentileza de ajudar na escolha do lugar e na amarração adequada.
     Cheguei cedo ao navio afim de conseguir um lugar melhor para me acomodar, mas não é este o procedimento. Os primeiros passageiros são orientados a fixar a rede no centro do barco, deixando as laterais para os passageiros que chegarem depois. Não era o que eu queria mas, tão logo tornou-se possível, transferi a minha rede para um local do meu agrado.
     Assim como o metrô em São Paulo, abertas as portas, todos os espaços vazios foram sendo ocupados, e depois disto, até mesmo onde não havia espaço mais um passageiro consegue algum lugar. Acostumado a esta situação, ajeitei meus pertences, minha rede, e passei a fazer um passeio de reconhecimento de todos os lugares, copa, bar, mirantes, tomadas, horários de refeições, preços. Comecei meu processo de integração com o ambiente e as pessoas.
     No horário previsto ouvimos a sirene e o navio partiu. É uma sensação muito gostosa. Quase todos na beirada vendo o porto se afastar, a brisa começando a soprar com o movimento. Todos acomodados e os demais espaços começando a ser usufruídos. Muitos, já acostumados a estas viagens, permanecem nas redes, outros, como eu, saem em busca de novos lugares para apreciar a paisagem e a viagem.
     Na frente do navio pude me sentir como Leonardo di Caprio em Titanic, com o vento no rosto e a sensação de liberdade. Muito bom!
Econtro do Rio Negro com o Solimões
     Passado algum tempo, horas? Não sei. O tempo passa de forma irregular... Chegamos ao encontros dos rios Negro com o Solimões. Estamos no Rio Negro, e ao longe avistamos a cor diferente das águas barrentas do Rio Solimões. Não me sinto capaz de descrever este encontro. Nada muda no navio, apenas nas águas. O que me resta é fotografar este momento para dar-lhe uma existência maior que este instante único. Embora o encontro das águas permaneça lá, para outros olhos, para outros instantes capturáveis, que não são meus.
Econtro do Rio Negro com o Solimões 
     Aqui fica evidente minha prepotência - e não direi nossa pois não tenho a intenção de comprometer outras pessoas em minhas falhas - a prepotência de pensar que o encontro das águas me pertence, sou eu quem proporciona-lhe alguma existência. Leso engano. O encontro das águas está lá desde tempos imemoriais, antes mesmo de esta terra ser chamada de Brasil. O encontro das águas permanecerá lá, pela conjuntura ambiental, talvez não por tanto mais tempo mas, com certeza, ainda tenho esperança, de que o encontro das águas permanecerá lá até depois que eu pereça. Não é o encontro das águas que tento imortalizar, mas o meu encontro com as águas.
Econtro do Rio Negro com o Solimões 
     Navegar é preciso. E assim seguimos as águas do rio, pois seguimos a correnteza, não estamos contra ela. E começa a monotonia das margens distantes. Depois de uma ou duas horas as árvores não são mais novidade, as palafitas dos ribeirinhos não são mais novidade, o cruzar das águas não é mais novidade, o vento no rosto e a sensação de liberdade não são mais novidade.
O rio do lado de lá
     Para alguns vem o sono, para outros bebidas, dominós, baralhos, músicas ruins, conversas. Cada um segue seu próprio rumo junto com o navio. Minha alternativa é ler "Terra Sonâmbula", o livro de Mia Couto que trouxe para me fazer companhia e, entre um capítulo e outro, o exercício de descrever esta viagem, tanto descrever o que acontece fora de mim quanto, e principalmente, para descrever a viagem que ocorre dentro de mim.
O rio do lado de cá


E o dia segue em Manaus

Teatro Amazonas
     Compradas as passagens de navio, outros afazeres eram necessários. Providenciar recursos financeiros no banco, adquirir uma rede. E assim o dia seguiu.
     Ainda era manhã, cedo. Tudo corria muito bem. Nenhum compromisso pendente. O que fazer? Uma visita à Ponta Negra, uma praia artificial nas margens do Rio Negro, próxima à cidade, ao lado da ponte. Identificado o ônibus urbano que me levaria até a praia, lá fui eu.
     O passeio urbano foi, também, bastante agradável, e a praia me surpreendeu pela beleza, mas também pela quantidade de lixo que estava sendo retirado de lá. Metade da praia já estava limpa, e na outra metade uma multidão de garis se empenhavam na limpeza daquela quantidade assustadora de lixo que disputava espaço com a areia. Suspiro. Por que a gente é assim?
     Mas a estrutura da praia é ótima: calcadões, escadarias, mirantes, fontes, um palco com platéia em forma de arena voltada para o rio. Uma linda obra arquitetônica irmanada com o espaço natural - o rio, pois a areia foi inserida no espaço para que a praça existisse. Com o tempo esta informação será ignorada, e a praia será naturalmente incorporada à existência do rio. Em minha cidade natal também existe um lago que passou por este processo. É a mão do homem à imagem de Deus.
     O Rio Negro tem águas da dor de ferrugem. Não é feio, ao contrário, é muito bonito! Mas não se vê nada dentro dele, mesmo usando óculos de natação. Ao fundo da paisagem vemos a outra margem do rio, e ao lado a ponte que o atravessa, uma ponte imensa, grandiosa, humanamente bela e, no calor das horas, o banho de rio era o sumo do prazer. Água doce, sem ondas, pisando em areia, corpo imerso sem medos, e as horas iam passando, lentamente.
     As companhias sempre se apresentam e, por mais misantropo que eu seja, alguma conversa sempre se estabelece com desconhecidos. Neste banho de rio conheci a Fran, Françoise, uma cabeleireira em Manaus, transexual. Foi uma conversa de amenidades, uma troca de pequenas histórias de nossas vidas. Estas trocas humanas enriquecem a viagem pois não podemos ir em busca apenas de paisagens e monumentos. Este encontro com paisagens humanas é magnífico.
     E como as horas, apesar de caminharem lentas como o rio, teimavam em seguir seu curso, o corpo sentiu a costumeira fome, o sol alto e agressivo me convidava para uma sombra. Decidi então me afundar uma última vez, me despedir da Fran e do rio, fazer uma última caminhada pelo calçadão, tomar um sorvete e fazer um último ritual de despedida do alto do mirante. Assim fiz.
     Seguiu-se a caminhada a um ponto de ônibus que não demorou a chegar. De volta ao centro da cidade passei pelo hotel para tomar um banho, melhorar os trajes, proteger a pele, e seguir até um restaurante indicado pelo amigo no dia anterior. Feita a refeição regular, voltei para o hotel descansar um pouco e fugir do calor daquela tarde.
Igreja de São Sebastião
     Ainda não era noite quando sai do hotel novamente para caminhar pela Praça e conhecer a Igreja de São Sebastião.
     Queria curtir o fim daquele último dia em Manaus na Praça do Teatro Amazonas, no Bar do Armando, um tradicional e precário boteco ali existente. O atendimento é péssimo. É necessário implorar por uma cerveja. Talvez, por ser um bar tradicional eles apenas atendam fregueses tradicionais, e os turistas e estrangeiros não são bem recebidos pelas razões já expostas. Mas como insisti em ficar, depois de um grande tempo sendo ignorado pelos garçons, tomei minhas iniciativas e consegui uma cerveja e o cardápio. Apesar de uma faixa enorme anunciando o bolinho de bacalhau português, o mesmo só era vendido em porções grandes, não sendo possível obter uma "meia porção". Optei então pelo sanduíche tradicional de pernil que combinou com o atendimento, isto é, um sanduíche sonso, caro e pequeno. Acho que a tradição do bar é ser ruim, vai entender estes casos. Neste momento senti saudade de outros sanduíches de pernil tradicionais, do Estadão, do BH na Augusta... enfim, não faltam boas referências. Quem já comeu sabe o que é, realmente, um sanduíche digno do título "tradicional". Mas ainda insiste em uma caipirinha, que também entrou para o rol das piores que já tomei. Nem eu consigo fazer uma caipirinha tão sem graça e aguada.
     Desisti de ser feliz no Bar do Armando. Fui até a outra esquina da praça tomar um delicioso suco de Taperebá (fiquei viciado neste suco aqui no Norte) e para aplacar a fome repeti o Tacacá da Gisela.
Praça Amazonas
     A noite se fez e, comendo o tacacá, me sentei nos bancos da praça onde haviam instalado um telão. O filme em cartaz era Avatar. Já havia assistido a este filme em 3D em São Paulo, mas assisti-lo inserido no universo amazônico entramos em n-dimensões. Foi um misto de respeito, de consciência, de preocupação. Me senti fazendo meus pedidos para Eywa junto com o Jake.
     Fim do filme, suspiros profundos, mais uma caminhada, uma pequena busca para prosseguir a noite, afinal, esta era a noite de despedida de Manaus, Para o dia seguinte a passagem para Santarém já estava comprada.
      Caminhei até uma rua onde existem algumas boates e bares com a boemia mais intensa da cidade. Escolhi um bar que, para ironia com os pretensos cristãos, se chama "Paraíso".. Ai sim, um bom atendimento, tradicional, como somente estes lugares tem a dignidade de oferecer, onde todos são bem-vindos, todos são iguais perante uma cerveja gelada. Mas como não pode deixar de ser, todo bar tem seus encostos, mas, dos males, o menor. Deixei uma dose para Exu e assim terminei minha cerveja e minha última noite em Manaus.

Comprando passagens de navio

     O dia seguinte amanheceu quente, como era de se esperar, embora estivesse frio para os padrões da região, apenas 31 graus.
     Depois do café da manhã caminhei até o porto para conhecer embarcações e alternativas para a viagem até Belém. Fiz exatamente aquilo que todos me aconselharam a não fazer, adquirir a passagem com um dos vendedores da rua.
     Aqui cabe, novamente, o alerta sobre o turismo no Brasil, já destacado anteriormente. Talvez, por outrora e também nos dias atuais, muitos estrangeiros virem para esta região com o único intuito de extorquir a riqueza da terra, os nativos se colocam na posição de reaver ao menos uma parte desta riqueza que lhes é tirada sem escrúpulos. Assim, por que haveriam eles de ter algum escrúpulo e, afinal, um turista é sempre um estrangeiro, e tem contra si o desconhecimento dos saberes locais. Mas não tenho do que reclamar. Não paguei tão barato quanto um nativo consegue pagar, nem tão caro quanto muitos turistas acabam pagando, além de receber muitas orientações e esclarecimentos.
     Mas é preciso tomar cuidado com gentilezas, pois a gentileza é uma mercadoria que custa caro. Nunca aceite uma gentileza sem perguntar seu preço antes, pois uma vez aceita, não há como discutir seu valor depois. Assim foi um passeio de lancha rápido para conhecer um dos barcos que poderia me levar até Santarém, cujo preço não vou citar pelo absurdo do valor em relação ao serviço prestado. Uma vez na armadilha, como sair dela?
     No barco, o NM São Bartolomeu II, uma suite que poderia sair por até R$ 300 não chegou a menos de R$ 450 e sai por R$ 600 para outros. Acabei optando mesmo pela rede, que apesar da falta de costume, atendia ao meu anseio de vivenciar a viagem como é comum para a maioria dos que empreendem esta viagem. Paguei R$ 90, poderia ter sido por R$ 60 ou R$ 120, mas não quero mais discorrer sobre as tabelas portuárias.
     O vendedor ganhou minha simpatia pelas informações e orientações. Decidi por sair de Manaus no dia seguinte, parar em Santarém para conhecer Alter do Chão e também adquiri, antecipadamente, a passagem Santarém-Belém no navio NM Amazon Star por R$ 140. Assim, a passagem Manaus-Belém saiu por R$ 230.
      Esta mudança de programação proporcionou os momentos mais emocionantes da viagem, sobre o que tratarei mais tarde. Foi assim que uma viagem Manaus-Belém se tornou uma viagem Manaus-Santarém-Alter do Chão-Belém, um dia a menos em Manaus para obter um dia em Alter do Chão que valeram uma vida!