sexta-feira, 20 de julho de 2012

A viagem de navio tem início

     Este era o objetivo principal desta viagem, utilizar o navio como transporte público e turístico, navegar pelo rio, saindo do centro do continente em direção ao mar. Seriam 5 dias de navegação entre Manaus e Belém do Pa'rá.
     Como não sou nada rígido em minhas decisões, acatei uma sugestão de parar em Santarém e conhecer, viver, pelo menos um dia, na paradisíaca cidade de Alter do Chão. Depois da conversa com o vendedor de passagens esta mudança foi assumida e posso afirmar, foi uma das melhores mudanças de decisão que tomei na minha vida. Foi transformar uma viagem típica de férias em uma viagem marcante em minha vida, uma viagem que traz a sensação de que você nunca será a mesma pessoa depois desta experiência.
     Mas ainda não chegamos lá. Estamos ainda na manhã do primeiro dia de embarque em um navio que ira cruzar os rios do Amazonas.
     Eu carrego comigo alguma maldição... nada pode ser tão simples a ponto de que nenhum obstáculo surja para ser ultrapassado. Como diz o Mário, "nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas / nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra".
     Chegando nas docas, lá estavam dezenas, talvez centenas de embarcações, todas muito parecidas entre si, base branca e detalhes em azul, e em um porto como este não existem plataformas ou portões numerados para onde se dirigir para embarcar.
     Embora nos aeroportos as mudanças de última hora causem a mesma sensação de estar perdido, ao chegar ao porto me veio esta angústia, para onde eu vou? Onde está o meu barco? Qual destes nomes pintados azul em fundo branco é o NM São Bartolomeu II?
     Procurei o local onde o navio estava ancorado no dia anterior, e lá estavam vários navios semelhantes, o meu devia estar entre eles, mas como chegar até lá? Fui em direção a uma rua que levava àquela doca e pedi ajuda a um segurança que controlava o fluxo de veículos que passavam por este caminho. E aqui temos mais uma gentileza cara, como a que citei anteriormente.
     Gentilmente o segurança interfonou e "confirmou" que o NM São Bartolomeu II estava ancorado naquela doca, mas para seguir meu caminho era necessário entrar com um carro, naquele caminho não eram permitidos pedestres. Como chegar até lá? De táxi, R$ 10. Aceitei a proposta, paguei e aguardei. Logo surgiu uma perua kombi, o segurança conversou com o motorista, problema aparentemente resolvido, entrei no carro e fui levado confortavelmente até onde os navios estavam ancorados. Lá chegando, onde está o NM São Bartolomeu II? Meu caronista não tinha a mínima ideia... procurei, não encontrei... Senti aquele cansaço típico da consciência do engodo. Para piorar o mal estar, havia uma passarela para pedestres, cuja entrada ficava do lado oposto ao da entrada de carros, sem taxas, apesar da grande caminhada que seria necessária.
     Aborrecido, procurei outro funcionário do porto que, para minha sorte, era íntegro e me amparou. Fez algumas ligações, contatou seu superior, tive que denunciar o comportamento do colega, aborrecimento seguido de constrangimento. O navio procurado estava nas "escadarias", ao lado do local onde esta pedra surgiu em meu caminho. Era só ter olhado para o lado oposto e avistado o São Bartolomeu. Este funcionário conseguiu outra carona para mim, desta vez sem taxa de gentileza, e me acompanhou até o local onde este círculo começou.
     Chegando à portaria, houve toda uma conversa de esclarecimento sobre o ocorrido, as desculpas e o diz-que-disse, que não foi assim, que o assado era outro. Enfim, ali estava o NM Sâo Bartolomeu II. Agradeci a quem realmente se dispoz a ajudar, tratei a perda como ajuda a um necessitado e segui meu caminho.
     Embarquei, a apresentação da passagem... será aceita? Foi, sem qualquer problema ou questionamento. Dentro do barco encontrei o vendedor da passagem, o cumprimentei. Eram necessários cordões para amarrar a rede nos suportes, R$ 5, incluída a gentileza de ajudar na escolha do lugar e na amarração adequada.
     Cheguei cedo ao navio afim de conseguir um lugar melhor para me acomodar, mas não é este o procedimento. Os primeiros passageiros são orientados a fixar a rede no centro do barco, deixando as laterais para os passageiros que chegarem depois. Não era o que eu queria mas, tão logo tornou-se possível, transferi a minha rede para um local do meu agrado.
     Assim como o metrô em São Paulo, abertas as portas, todos os espaços vazios foram sendo ocupados, e depois disto, até mesmo onde não havia espaço mais um passageiro consegue algum lugar. Acostumado a esta situação, ajeitei meus pertences, minha rede, e passei a fazer um passeio de reconhecimento de todos os lugares, copa, bar, mirantes, tomadas, horários de refeições, preços. Comecei meu processo de integração com o ambiente e as pessoas.
     No horário previsto ouvimos a sirene e o navio partiu. É uma sensação muito gostosa. Quase todos na beirada vendo o porto se afastar, a brisa começando a soprar com o movimento. Todos acomodados e os demais espaços começando a ser usufruídos. Muitos, já acostumados a estas viagens, permanecem nas redes, outros, como eu, saem em busca de novos lugares para apreciar a paisagem e a viagem.
     Na frente do navio pude me sentir como Leonardo di Caprio em Titanic, com o vento no rosto e a sensação de liberdade. Muito bom!
Econtro do Rio Negro com o Solimões
     Passado algum tempo, horas? Não sei. O tempo passa de forma irregular... Chegamos ao encontros dos rios Negro com o Solimões. Estamos no Rio Negro, e ao longe avistamos a cor diferente das águas barrentas do Rio Solimões. Não me sinto capaz de descrever este encontro. Nada muda no navio, apenas nas águas. O que me resta é fotografar este momento para dar-lhe uma existência maior que este instante único. Embora o encontro das águas permaneça lá, para outros olhos, para outros instantes capturáveis, que não são meus.
Econtro do Rio Negro com o Solimões 
     Aqui fica evidente minha prepotência - e não direi nossa pois não tenho a intenção de comprometer outras pessoas em minhas falhas - a prepotência de pensar que o encontro das águas me pertence, sou eu quem proporciona-lhe alguma existência. Leso engano. O encontro das águas está lá desde tempos imemoriais, antes mesmo de esta terra ser chamada de Brasil. O encontro das águas permanecerá lá, pela conjuntura ambiental, talvez não por tanto mais tempo mas, com certeza, ainda tenho esperança, de que o encontro das águas permanecerá lá até depois que eu pereça. Não é o encontro das águas que tento imortalizar, mas o meu encontro com as águas.
Econtro do Rio Negro com o Solimões 
     Navegar é preciso. E assim seguimos as águas do rio, pois seguimos a correnteza, não estamos contra ela. E começa a monotonia das margens distantes. Depois de uma ou duas horas as árvores não são mais novidade, as palafitas dos ribeirinhos não são mais novidade, o cruzar das águas não é mais novidade, o vento no rosto e a sensação de liberdade não são mais novidade.
O rio do lado de lá
     Para alguns vem o sono, para outros bebidas, dominós, baralhos, músicas ruins, conversas. Cada um segue seu próprio rumo junto com o navio. Minha alternativa é ler "Terra Sonâmbula", o livro de Mia Couto que trouxe para me fazer companhia e, entre um capítulo e outro, o exercício de descrever esta viagem, tanto descrever o que acontece fora de mim quanto, e principalmente, para descrever a viagem que ocorre dentro de mim.
O rio do lado de cá


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