Segue um trecho do livro "Teresa Filósofa", precisamente, o discurso do Abade T... sobre religiões, que na edição da L&PM Pocket está nas páginas 94 a 104.
Este livro foi um dos maiores best-sellers da Europa no século XVIII e sua autoria "anônima" é atribuida a Jean Baptiste Boyer (1704-1771), o marquês d'Argens.
É uma composição de libertinagem, luxúria e filosofia, cuja necessidade de discreção para a época em que foi escrito e para os tempos atuais é claramente perceptível em cada parágrafo que contém.
A quem quiser se aventurar pelas confissões de Teresa, boa leitura!
EXAME DAS RELIGIÕES PELAS LUZES NATURAIS
- Por que então eles não são inteiramento inocentes? - disse a Sra. C... - Pois vos esforçastes em dizer que eles não ferem absolutamente o interesse da sociedade, que somos levados a isso por uma necessidade tão natural a certos temperamentos, tão carente de alívio quanto as necessidades da fome e da sede... Vós me demonstrastes muito bem que agimos somente pela vontade de Deus, que a natureza não passa de uma palavra vazia de sentido e é somente o efeito, do qual Deus é a causa. Mas da religião, o que direis? Ela nos proíbe os prazeres concupiscentes fora do casamento. Será isto ainda uma palavra vazia de sentido?
- O quê, madame? respondeu o Abade -, não vos lembrais portanto que, absolutamente, não somos livres, que todas as nossas ações são necessariamente determinadas? E se não somos livres, como podemos pecar? Mas já que quereis, entremos seriamente em matéria sobre o capítulo das religiões. Conheço a vossa discrição, a vossa prudência, e temo tanto menos me explicar quanto protesto diante de Deus pela boa-fé com que procurei separar a verdade da ilusão. Eis o resumo de meus trabalhos e de minhas reflexões sobre essa importante matéria.
"Deus é bom, digo eu. Sua bondade me assegura que, se eu procurar ardorosamente saber se é um culto verdadeiro que ele exige de mim, ele não me enganará, evidentemente chegarei a conhecer esse culto, de outra forma Deus seria injusto. Ele me deu a razão para eu me servir dela. Em que poderia melhor empregá-la?
Se um cristão de bóa-fé não quiser examinar a sua religião, por que ele quererá (assim como o exige) que um maometano de boa-fé examine a sua? Tanto um quanto outro acreditam que sua religião lhes foi revelada por Deus, um por Jesus Cristo, o outro por Maomé.
A fé somente nos vem porque homens nos disseram que Deus fez a revelação de certas verdades. Mas, da mesma forma, outros homens o disseram aos sectários das outras religiões. Em quais acreditar? Para sabê-lo, é preciso portanto examinar, pois tudo o que nos vem dos homens deve ser submetido à nossa razão.
Todos os autores das diversas religiões espalhadas sobre a terra se vangloriaram de que Deus as tinha revelado para eles. Em quais acreditar? Examinemos qual é a verdadeira. Mas como tudo é preconceito da infância e da educação, para julgar de maneira sadia, é preciso sacrificar a Deus qualquer preconceito e, em seguida, examinar com a luz da razão uma coisa da qual depende a nossa felicidade ou a nossa desgraça durante nossa vida e durante a eternidade.
Primeiramente observo que há quatro partes no mundo, que no máximo a vigésima parte de uma dessas quatro partes é católica, que todos os habitantes das outras partes dizem que adoramos um homem, o pão, que multiplicamos a Divindade, que quase todos os padres se contradisseram em seus escritos, o que prova que não estavam inspirados por Deus.
Todas as mudanças de religião, desde Adão, feitas por Moisés, por Salomão, por Jesus Cristo e, em seguida pelos padres, demonstram que essas religiões não passam de obras dos homems. Deus jamais varia! Ele é imutável.
Deus está em todo lugar. Contudo a Sagrada Escritura diz que Deus buscou Adão no paraíso terrestre: Adam, ubi es, que Deus passeou ali, que falou sobre Jó com o diabo.
A razão me diz que Deus não está sujeito a nenhuma paixão. Entretanto, no Gênese, no capítulo VI, fazem Deus dizer que se arrependeu de ter criado o homem, que a sua cólera não foi ineficaz. Deus parece tão fraco, na religião cristã, que não pode reduzir o homem ao ponto que gostaria: ele o pune pela água, em seguida pelo fogo, o homem continua o mesmo; ele envia profetas, os homens ainda são os mesmos; ele tem somente um filho único, ele o envia, contudo os homens não mudam em nada. Quantas coisas ridículas a religião cristã atribui a Deus!
Todos estão de acordo que Deus sabe o que deve acontecer durante a eternidade. Mas Deus - diz-se - somente conhece o resultado de nossas ações depois de ter previsto que abusaríamos de sua misericórdia e que cometeríamos essas mesmas ações. Desse conhecimento, todavia, resulta o fato de que Deus, fazendo-se nascer, já sabia que estaríamos infalivelmente perdidos e eternamente infelizes.
Vemos na Sagrada Escritura que Deus enviou profetas para avisar os homens e exortá-los a mudar de conduta. Ora, Deus, que sabe tudo, não ignorava que os homens não mudariam, absolutamente, de conduta. Portanto a Sagrada Escritura supõe que Deus é um ser enganador. Podem essas ideias estar de acordo com a certeza que temos da bondade infinita de Deus?
Supõe-se que Deus, que é todo-poderoso, tenha um rival perigoso no diabo que, incessantemente, mesmo contra a sua vontade, lhe tira três quartos do pequeno número de homens que ele escolheu, pelos quais seus Filho se sacrificou, sem se preocupar com o resto do gênero humano. Que lastimáveis absurdos!
Segundo a religião cristã, pecamos somente pela tentação. É o diabo - dizem - que nos tenta. Deus tinha somente que aniquilar o diabo, estaríamos todos salvos: há muita injustiça ou impostência de sua parte.
Uma porção bastante grande dos ministros da religião católica pretende que Deus nos dá mandamentos, mas sustenta que não poderíamos cumpri-los sem a graça, que Deus dá a quem lhe agrada e que, contudo, Deus pune aqueles que não o observam! Que contradição! Que impiedade monstruosa!
Existe algo tão miserável quanto dizer que Deus é vingativo, ciumento, irado, quanto ver que os católicos dirigem as suas preces aos santos, como se esses santos estivessem em todo lugar assim como Deus, como se esses santos pudessem ler nos corações dos homens e ouvi-los?
Que ridículo dizer que devemos fazer tudo para a maior glória de Deus. será que a glória de Deus pode ser aumentada pela imaginação, pelas ações dos homens? Podem eles aumentar alguma coisa Nele? Ele não se basta a si mesmo?
Como homens puderam imaginar que a Divindade achava-se mais honrada, mais satisfeita, por vê-los comer um arenque e não uma calhandra, uma sopa de cebola e não uma sopa de toucinho, um linguado e não uma perdiz, e que essa mesma Divindade os condenaria para sempre se em certos dias eles dessem preferência à sopa de toucinho?
Fracos mortais! Acreditais poder ofender a Deus! Acaso poderíeis pelo menos ofender a um rei, um príncipe, que seriam razoáveis? Eles desprezariam vossa fraqueza e vossa impotência. Anunciam-vos um Deus vingador e vos dizem que a vingança é um crime. Que contradição! Asseguram-vos que perdoar uma ofensa é uma virtude e ousam vos dizer que Deus se vinga de uma ofensa involuntária por uma eternidade de suplícios!
Se existe um Deus, há um culto. Contudo, antes da criação do mundo, devemos convir, havia um Deus e nenhum culto. Aliás, desde a criação, existem animais que não prestam nenhum culto a Deus. Se não existisse nenhum homem, sempre haveria um Deus, criaturas e nenhum culto. A mania dos homens é a de julgar ações de Deus por aquelas que lhes são próprias.
A religião cristã dá uma falsa ideia de Deus, pois a justiça humana, segundo ela, é uma emanação divina. Ora, segundo a justiça humana, somente poderíamos censurar as ações de Deus para com seu Filho, para com Adão, para com os povos à quem nunca se fez pregações, para com as crianças que morrem antes do batismo.
Segundo a religião cristã, é preciso tender para a maior perfeição. O estado de virgindade, segundo ela, é mais perfeito do que o do casamento. Ora, é evidente que a perfeição da religião religião cristã tende à destruição do gênero humano. Se os esforços, os discursos dos padres tivessem sucesso, em sessenta ou oitenta anos o gênero humano estaria destruído. Pode essa religião ser de Deus?
Existe algo de mais absurdo do que mandar padres, moonges, outras pessoas orarem por si? Julga-se Deus como se julgam reis.
Que excesso de loucura acreditar que Deus nos fez nascer para somente fazermos o que é contranatural, o que pode nos tornar infelizes nesse mundo, exigindo que recusássemos tudo o que satisfaz os sentidos, os apetites que ele nos deu! O que mais poderia fazer um tirano obstinado em nos perseguir desde o instante do nascimento até o da nossa morte?
Para ser perfeito cristão é preciso ser ignorante, acreditar cegamente, renunciar a todos os prazeres, às honras, às riquezas, abandonar os seus pais, os seus amigos, guardar a sua virgindade, numa palavra, fazer tudo o que é contrário à natureza. Contudo, essa natureza, com certeza, opera somente pela vontade de Deus. Que contradição a religião supõe num ser infinitamente justo e bom!
Uma vez que Deus é o criador e o senhor de todas as coisas, devemos utilizá-las com a finalidade para a qual Ele as criou e nos servirmos delas segundo o fim que Ele se propôs ao criá-las. Tanto que, pela razão, pelos sentimentos interiores que Ele nos deu, podemos conhecer seus desígnios e os seus objetivos e conciliá-los com o interesse da sociedade estabelecida entre os homens no país que habitamos.
O homem não é feito para ser ocioso: é preciso que ele se ocupe com alguma coisa que tenha por fim o seu próprio benefício, conciliado com o bem geral. Deus não quis somente a felicidade de alguns em particular. Ele quer a felicidade de todos. Portanto devemos nos prestar mutuamente todos os serviços possíveis, contanto que esses serviços não destruam algumas ramificações da sociedade estabelecida: é este último ponto que deve dirigir as nossas ações. Conservando-o, no que fazemos, em nosso estado, cumprimos todos os nossos deveres. O resto não passa de quimera, ilusão, preconceitos."
ORIGEM DAS RELIGIÕES
"Todas as religiões, sem nenhuma exceção, são obra dos homens. Não existe uma que não tenha tido os seus mártires, os seus pretensos milagres. O que provam mais os nossos, a mais do que os das outras religiões?
As religiões, inicialmente, foram estabelecidas pelo temor: o trovão, os temporais, os ventos, o granizo, destruíam os frutos, as sementes que alimentavam os primeiros homens espalhados na superfície da terra. A sua impotência em evitar esses acontecimentos obrigou-os a recorrer às preces para o que eles reconheciam ser mais poderoso do que eles e que acreditavam estar disposto a atormentá-los. Como consequência, homens ambiciosos, grandes gênios, políticos importantes, nascidos em séculos diferentes, em diversas regiões, tiraram partido da credulidade dos povos, anunciaram deuses, em geral estranhos, fantasiosos, tiranos, estabeleceram cultos, começaram a formar sociedades das quais pudessem se tornar os chefes, os legisladores. Eles reconheceram que, para manter essas sociedades, era necessário que cada um dos seus membros, em geral, sacrificasse as suas paixões, os seus prazeres particulares para a felicidade dos outros. Daí a necessidade de fazer considerar um equivalente de recompensas a serem esperadas e penas a serem temidas que determinassem a execução desses sacrifícios. Portanto, esses políticos imaginaram as religiões. Todas prometem recompensas e anunciam penas que levam uma grande parte dos homens a resistir à inclinação natural que têm de se apropriarem do bem, da mulher, da filha de outrem, de se vingarem, falarem mal, manchar a reputação do seu próximo a fim de tornar a sua mais proeminente."
ORIGEM DA HONRA
"Por consequência, a honra foi associada à religiões. Esse ser, tão quimérico quanto elas, tão útil à felicidade das sociedades e à de cada um em particular, foi imaginado para conter nos mesmos limites, e pelos mesmos princípios, um certo número de outros homens."
A VIDA DE UM HOMEM É COMPARADA A UM LANCE DE DADOS
"De forma alguma duvidemos disso: existe um Deus, criador e maior de tudo o que existe. Fazemos parte desse todo e somente agimos em consequência dos primeiros princípios do movimento que Deus lhe deu. Tudo é combinado e necessário, nada é produzido pelo acaso. Três dados, lançados por um jogador - levando-se em conta o arranjo de dados no seu copo, a força e o movimento dado - devem infalivelmente fazer este ou aquele ponto. O lance de dados é o quadro de todas as ações da nossa vida. Um dado empurra um outro, ao qual imprime um movimento necessário e, de movimento em movimento, fisicamente resulta um determinado ponto. Da mesma forma o homem, pelo seu primeiro movimento, por sua primeira ação, é determinado de forma invencível para uma segunda, uma terceira, etc. Pois, dizer que um homem quer uma coisa porque a quer é não dizer nada, é supor que o nada produz um efeito. É evidente que é um motivo, uma razão que o determina a querer essa coisa e, de razões em razões, que são determinadas umas pelas outras, a vontade do homem é invencivelmente obrigada a fazer estas ou aquelas ações durante o decorrer de toda a sua vida, cujo fim é o do lance de dados.
Amemos a Deus, não que ele o exija de nós, mas porque ele é soberanamente bom, e temamos somente os homens e as suas leis. Respeitemos essas leis porque elas são necessárias ao bem público, do qual cada um de nós faz parte.
Aí está, madame - acrescentou o Abade - o que minha amizade por vós me arrancou sobre o capítulo das religiões. É o fruto de vinte anos de trabalho, de vigilias e de meditações, durante os quais, de boa-fé, procurei distinguir a verdade da mentira.
Concluamos, portanto, minha cara amiga, que os prazeres que experimentamos, vós e eu, são puros, são inocentes, uma vez que não ferem nem Deus, nem os homens, pelo segredo e pela decência que empregamos em nossa conduta. Sem essas duas condições, concordo que causaríamos escândalo e que seríamos criminosos para com a sociedade: nosso exemplo poderia seduzir jovens corações, destinados por suas famílias, por suas origens, a empregos úteis ao bem público, que talvez eles negligenciassem ocupar para seguir somente a torrente dos prazeres."
A SRA. C... TENTA PERSUADIR O ABADE T... DE QUE, PARA A FELICIDADE DA SOCIEDADE, ELE DEVE COMUNICAR O SEU SABER AO PÚBLICO
- Mas - replicou a Sra. C... -, se os nossos prazeres são inocentes, como agora compreendo, por que, pelo contrário, não instruir todo mundo sobre a maneira de experimentar do mesmo gênero? Por que não comunicar o fruto que tirastes de vossas meditações metafísicas aos nossos amigos, aos nossos concidadãos, já que nada poderia contribuir mais para a sua tranquilidade e para a sua felicidade? Não me dissestes cem vezes que não há maior prazer que o de pessoas felizes?
RAZÃO QUE O ABADE T... APRESENTA PARA NÃO FAZÊ-LO
- Eu vos disse a verdade, madame - retomou o Abade. - Mas tomemos muito cuidado para não revelar aos tolos verdades que eles não sentiriam ou das quais abusariam. Elas devem ser conhecidas somente por pessoas que sabem pensar e cujas paixões estão de tal forma equilibradas entre si que eles não são subjugados por nenhuma. Essa espécie de homem e de mulheres é muito rara: de cem mil pessoas, não existem vinte que se acostumam a pensar, e dessas vinte, mal encontrareis quatro que, de fato, pensam por si mesmas ou que não sejam levadas por alguma paixão dominante. Por isso é preciso ser extremamente circunspecto sobre o gênero de verdades que hoje examinamos. Como poucas pessoas percebem a necessidade que existe de nos ocuparmos da felicidade dos nossos vizinhos para assegurar aquela que nós mesmos buscamos, devemos dar a poucas pessoas provas claras da insuficiência das religiões, que não impedem de fazer agir e de conter um grande número de homens em seus deveres e na observação das regras que, no fundo, somente são úteis ao bem da sociedade sob o véu da religião, pelo temor das penas e pela esperança das recompensas eternas que ela lhes anuncia. são esse temor e essa esperança que guiam os fracos: o número deles é grande. São a honra, o interesse público, as leis humanas que guiam as pessoas que pensam: na verdade, o seu número é bem pequeno.
Logo que o Sr. Abade T... acabou de falar, à Sra. C... agradeceu com termos que demonstravam toda a sua satisfação:
- És adorável, meu caro amigo - disse-lhe, saltando em seu pescoço. - Como estou feliz em conhecer, amar um homem que pensa de maneira tão sadia quanto tu! Esteja certo de que jamais abusarei da tua confiança e de que seguirei exatamente a solidez dos teus princípios.
...
Este texto não é um texto sobre anarquismo. Não? Não. O anarquismo vai apenas se definir no século XIX. Mas sem dúvida, aqui já se começa a enfraquecer os guilhões das tradições e, principalmente, da religião.
Apesar de seu caráter subversivo, Teresa é quase uma santa, pois só vai entregar sua virgindade ao Conde após o casamento... Bem, não há um casamento, teoricamente, mas Teresa e o Conde se isolam do mundo em um castelo; faltou apenas a frase: "E viveram felizes para sempre!". Mas foi quase isto (p 162, 163):
ELA FAZ UM RESUMO DE TUDO O QUE ELE ENCERRA
Eu vos repito, portanto, censores atrabiliários, não pensamos como queremos. A alma somente tem vontade e é determinada pelas sensações, pela matéria. ... Enfim, os reis, os príncipes, os magistrados, todos os diversos superiores, por gradações, que cumprem os deveres do seu estado, devem ser amados e respeitados porque cada um deles age para contribuir para o bem de todos.
Ou seja, um final feliz, conservador. É um texto tão conservador que todas as cenas de sexo são protagonizadas por outras personagens. Teresa apenas pratica o onanismo (maturbação, siririca, e tantos outros termos; para não ficarmos no palavriado erudito). Existem até trechos que beiram a homofobia (p 141, 142):
DISSERTAÇÃO SOBRE O GOSTO DOS AMADORES DO PECADO ANTIFÍSICO, ONDE SE PROVA QUE ELES NÃO DEVEM SER NEM LASTIMADOS, NEM CENSURADOS
Após esse belo relado, que nos provocou uma grande risada, a Bois-Laurier continuou mais ou menos nestes termos:
"Nem te falo do gosto desses monstros que o têm somente para o prazer antifísico, seja como agentes, seja como pacientes. Destes, a Itália hoje produz menos do que a França. Não sabemos que um senhor amável, rico, obstinado por esse frenesi, não pôde chegar a consumar o seu casamento com uma esposa encantadora, na primeira noite, a não ser por meio de seu criado a quem ordenou mesmo, no auge do ato, que lhe enfiasse por trás, da mesma forma que o fazia em sua mulher pela frente?
Observo, contudo, que os Senhores Antifísicos zombam de nossos insultos e defendem arduamente o seu gosto, sustentando que os seus antagonistas se conduzem somente pelos mesmos princípios que eles. 'Todos buscamos o prazer - dizem esses heréticos - pela via em que acreditamos encontrá-lo.' É o gosto que guia os nossos adversários, assim como nós. Ora, estareis de acordo que não somos senhores de ter este ou aquele gosto. Mas - dizem - quando os gostos são criminosos, quando ultrajam a natureza, é preciso rejeitá-los. Nada disso: Não existe nenhum culpado. Aliás, é falso que o antifísico seja contranatura, pois é essa mesma natureza que nos dá a inclinação para esse prazer. Mas - dizem ainda - não se pode procriar no seu semelhante. Que raciocínio lastimável! Onde estão os homens, de um gosto e do outro, que usufruem do prazer da carne visando fazer filhos?"
Enfim, continuou a Bois-Laurier, os Senhores Antifísicos alegam mil boas razões para fazerem acreditar que não deve ser censurados. De qualquer forma, eu os detesto e preciso te contar uma brincadeira bastante engraçada que fiz uma vez na minha vida com um desses execráveis inimigos de nosso sexo.
Bem; "eu os detesto", "execráveis inimigos" e a "brincadeira bastante engraçada" - que eu não achei graça alguma... - se não for o primeiro texto homofóbico na literatura, deve ser um exemplo de seus primórdios.
Mas, como o próprio livro apresenta na página 159: "Estes são os efeitos do preconceito: eles são os nossos tiranos."
São ideias, no geral, deístas (garantem a existência de Deus) e deterministas, como aparenta o trecho que escolhi para encerrar este tópico. Mas, repito, vejo nele um bom início para as ideias libertárias que se definirão no século seguinte (p 155, 156).
DEMONSTRAÇÃO SOBRE A IMPOTÊNCIA EM QUE SE ENCONTRA A ALMA PARA AGIR OU PENSAR DESTA OU DAQUELA MANEIRA
Outras vezes me explicáveis, desenvolvíeis as curtas lições que eu recebera do Sr. Abade T...:
- Ele vos ensinou - vós me dizíeis - que não somos mais senhores de pensar desta ou daquela maneira, de ter esta ou aquela vontade, do que somos senhores de ter ou não febre. De fato - acrescentáveis -, por observações claras e simples, vemos que a alma não é senhora de nada, que ela age somente em consequência das sensações e das faculdades do corpo, que as causas que podem produzir desordens nos órgãos perturbam a alma, alteram a mente; que um vaso, uma fibra, afetados no cérebro podem tornar imbecil o homem mais inteligente do mundo. Sabemos que a natureza age somente pelos caminhos mais simples, por um princípio uniforme. Ora, já que é evidente que não somos livres em certas ações, não o somos em nenhuma.
"Acrescentemos a isso que, se as almas fossem puramente espirituais, seriam todas as mesmas. Sendo todas as mesmas, se tivessem a faculdade de pensar e de querer por si mesmas, pensariam e decidiriam todas da mesma maneira em casos iguais. Ora, é exatamente o que não acontece. Portanto, elas são determinadas por alguma outra coisa, e essa alguma outra coisa somente pode ser a matéria, pois os mais crédulos conhecem somente o espírito e a matéria."
Teresa Filósofa.
- Porto Alegre: L&PM Pocket, 2010.